De la Mancha ao Sertão:
o Ibérico na tradição musical do Brasil
“Em algum lugar da Mancha, de cujo nome não me quero lembrar…”, assim começa o romance dos romances, que narra as aventuras e desventuras do engenhoso e universal Dom Quixote de la Mancha, aquele que não é de nenhum lugar concreto, pois pertence a toda ela, que hoje já não é mais outra que não o mundo inteiro. É precisamente a efeméride dos 400 anos da morte de seu consagrado autor, Miguel de Cervantes Saavedra (Alcalá de Henares, 1547 – Madrid, 1616), que nos dá o mote, guiados pelo nosso intrépido cavaleiro andante, para cruzar o Mar Oceano e transpor as agrestes paisagens manchegas ao infinito Sertão do Brasil, onde as tradições tardo-medievais da velha Ibéria se fazem iniludivelmente presentes.
A riqueza dinâmica dessa estanqueidade artístico-temporal, paradoxo e paradigma de um mundo de revigorante arcaísmo – cuja história se confunde com a própria história da colonização brasileira – é o manancial inesgotável que deu de beber a uma plêiade de artistas das mais diversas áreas, criadores do chamado Movimento Armorial, nascido nos anos 1970, o qual preconizava a fusão dos elementos erudito e popular em prol da (re)criação de uma arte nacional por excelência. Para o escritor paraibano Ariano Suassuna – al lado do músico potiguar Antônio Madureira, uma das figuras de proa do Movimento mais tarde rebatizado Romançal – as leituras de autores espanhóis pertencentes ao Siglo de Oro (sécs. XVI/XVII), juntamente com os antigos romances ibéricos e a épica castelhana, exerceram uma influência decisiva, eternizada em obras de referência do teatro e da literatura brasileira, como o Auto da Compadecida ou oRomance d’A Pedra do Reino.
Cervantes, em cuja obra as manifestações populares e eruditas harmonizam-se numa simbiose natural, é uma presença tutelar na produção literária de Suassuna, que encontra no Sertão do Brasil o mesmo espírito atemporal do Romancero Viejocastelhano, vivificado no Romanceiro Popular do Nordeste. É ele que anima a onipresente literatura dos folhetos pendurados no cordel, corporificando-se na rabeca, no pífano e na viola, que se desmaterializam em puro modalismo sonoro no acompanhamento das cantorias, cuja ilustração imagética, sulcada nos veios da madeira, faz-se arquétipo na xilogravura… Na música armorial confluem duas vertentes fundamentais: de um lado, os elementos afro-brasileiro e ameríndio, e de outro, a música de origem ibérica trazida pelos colonizadores em seus cancioneiros populares e em suas formas eruditas – do cantochão à polifonia dos romances e madrigais, glosada no éter divino pela voz do órgão… No vaqueiro nordestino, figura montada, heróica, épica por antonomásia, transmuta-se o cavaleiro da antiga gesta castelhana, cujo canto de façanhas e bravatas é a mais pura cantoria sertaneja… No malandro, tipo cheio de galhofa, de manha e artimanha, virtuoso do “melhor-contar”, revela-se igualmente o pícaro espanhol, cujo único meio de vida não é mais que a própria astúcia. Picaresca e Cavalaria encontram o mais eloquente amálgama na obra máxima de Cervantes, na qual entre o cavaleiro fidalgo e o pícaro escudeiro se estabelece um jogo inusitado de simpatias recíprocas que continua a cativar, divertir e comover o leitor há mais de quatro séculos.
No Sertão das Minas Gerais, em pleno vale do Rio Jequitinhonha, a cidade histórica de Diamantina, terra mítica de diamantes, de conjurações, de amores improváveis, da lendária corte da Chica que manda, paragem de tantos aventureiros, cavaleiros, tropeiros que ao longo dos séculos sulcaram o pedregoso solo das veredas do Espinhaço, receberá a segunda edição do seu Festival Internacional de Música Histórica, que amplia o termo “Música Antiga” da primeira edição para abarcar, para além da música grafada e, portanto, de cariz erudito, os saberes e o fazer musical disseminados pela tradição oral, ancestral, vernacular, custodiada pelas gentes dos Sertões do Brasil, que juntos conformam o riquíssimo arcabouço da cultura brasileira mais autêntica, tão reivindicada pelos artistas armoriais. A música armorial do nosso tempo, a música do tempo de Cervantes, os antigos romances ibéricos transmutados na polifonia do órgão, o romanceiro popular brasileiro, os ternos de pífanos, o som incisivo e cantadeiro da viola de arame, a música religiosa e devocional do antigo Arraial do Tejuco, a música dos salões da Diamantina oitocentista, para além de mini-cursos, aulas-espetáculo e mesas de debate integradas por especialistas nas mais diversas disciplinas conformam uma oferta de programação ampla e coerente, que busca entender o Brasil desde as entranhas, nutrindo-se da seiva de suas raízes mais atávicas e profundas.
E assim, guiados pelo passo errante do Cavaleiro da Triste Figura, adentremos o incontornável coração anímico do Brasil: o Sertão… do agreste, da catinga, dos buritis, que, nas sempre sábias palavras do mineiro Guimarães Rosa “é quando menos se espera”, “é o sozinho”, “é sem lugar”, “é dentro da gente”… e ouçamos então essas vozes caladas, presentes, passadas, eternas, que nos falam de cavaleiros, de donzelas impossíveis, de coragem, de façanhas, de desditas, de argúcias, de sobrevivência, de verdade, de fé… nessa grande Mancha imemorial, que também é aqui.
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