Autor: Wander Conceição.
Há muito,
tenho evitado emitir opiniões sobre diversas coisas e situações que envolvem
Diamantina. Como possuo o hábito de falar a verdade, não maquiar minha opinião,
e não me portar como bom cordeirinho, na maioria das vezes que me expresso sobre
temas ácidos, recebo o rótulo de polêmico. Para grande número de pessoas é muito
mais fácil e cômodo seguir o fluxo geral às cegas, ainda que em seu íntimo
carreguem a convicção de que discordam frontalmente da direção tomada.
É extremamente
ridícula e deprimente a postura de um súdito tentando mostrar para seus pares
que possui uma realeza maior do que a do rei. Penso que a causa desse desvio de
conduta está em dois vícios principais: a vaidade exacerbada e a inveja.
Inflamados esses dois, eles são capazes de alimentar a arbitrariedade, a
vingança, a ira, a perseguição, a empáfia, a arrogância, a prepotência, a
injustiça, a intransigência, a covardia, a falsidade, dentre outras
habilidades.
Tenho estudado
bastante a política de Diamantina. Há um traço marcante em nossos comandantes,
característica que vem desde os tempos coloniais: a vaidade exacerbada! Por
vezes brinco que essa situação ocorre em conseqüência da praga do pajé
Pirakassu, mas quem sabe essa maldição não seria verdade? Uma maioria ampla dos nossos governantes municipais
agiu exatamente assim. Apenas suas opiniões são corretas, mesmo frente a
opiniões contrárias de profundos conhecedores das diversas demandas.
Então, essa
situação de Diamantina ser atualmente Patrimônio Cultural da Humanidade gera um
paradoxo hilário. Nossos comandantes adoram estufar o peito e falar desse
título, mas várias de suas ações são totalmente contraditórias ao compromisso
que Diamantina assumiu com a UNESCO: “As singularidades têm de ser preservadas
para conhecimento das gerações futuras”. Mas aí, na prática, eles agridem a
lógica, a obviedade.
Dessa vez, o
que me fez sair de meu silêncio foi uma pequena peça de escultura, um simples
busto. Sábado próximo passado, no Largo Dom João, banda de música, um alarido
danado, trânsito embaraçado, discurso, egos inflamados! Um negócio bem ao gosto
da classe política! Tudo isso para inaugurar um cantinho ao lado do prédio onde
funcionou o CESU, que foi cimentado. No meio do alvoroço, quando observei melhor,
vi o busto de Francisco Sá lá no centro do Largo Dom João, no lugar do antigo
pirulito.
Incontinenti, uma
recordação saltou da gaveta do esquecimento e ocupou a gaveta da lembrança de
minha memória. Aquela era a peça que o ex-prefeito Gustavo Botelho Júnior,
cerca de dez anos passados, havia retirado da praça do Bonfim e enfiado num
porão qualquer! Essa foi apenas uma de suas várias agressões ao nosso
patrimônio.
Entre exemplos
diversos, seu governo decidiu que a Serra de São Francisco chama-se é Serra dos
Cristais. Ora, a formação das cidades mineiras é extremamente semelhante. Os
exploradores que adentraram o território mineiro escolhiam os nomes de seus
santos de devoção para batizar os territórios conquistados. Assim, ao estacarem
diante do lamaçal onde três riachos se encontravam, os aventureiros que
fundaram o Arraial do Tijuco deram ao morro a sua esquerda o nome de Santo
Antônio – sobre o qual a cidade foi edificada – e ao paredão a sua direita o
nome de São Francisco. Por isso, no período em que Diamantina
esteve dividida em duas freguesias católicas, uma chamava-se Santo Antônio e a
outra, São Francisco. Mas o ex-prefeito, possuidor de maior realeza que a do
rei, decidiu que o nome “daquele serro curvado que mura a cidadezinha” era
outro.
Dos diversos
Tênis Clubes construídos pelo governo do estado em Minas Gerais na década de
1940, apenas o de Diamantina teve como sede social uma obra do arquiteto Oscar
Niemeyer. A história do nosso Tênis Clube é singularíssima. Possuía um time de
vôlei feminino respeitadíssimo, que chegou a ser campeão mineiro. Daquela
piscina de 25 metros saíram alguns campeões brasileiros de natação. Mas o
ex-prefeito decidiu separar a obra de Niemeyer do corpo geral do clube, num ato
arbitrário e inconseqüente, no apagar das luzes de seu segundo mandato.
Enumerar suas
ações equivocadas aqui demandaria espaço, tempo e paciência. Voltemos então ao
busto! João da Matta Machado, eleito deputado da província de Minas Gerais para
o biênio 1878-1879, recebeu um relatório do monsenhor Augusto Júlio de Almeida,
vigário geral da diocese de Diamantina. Baseado nas memórias do general José
Vieira Couto de Magalhães sobre navegação fluvial para agilizar a inter-relação
entre territórios brasileiros, o relatório propugnava pela construção de uma
estrada de ferro que chegasse até Diamantina. Esse sonho passou por diversas
etapas, por diversos governos municipais, por diversos atores e adentrou o
século XX.
Falecido o
governador de Minas Gerais, João Pinheiro da Silva, em 25 de outubro de 1908, Julio
Bueno Brandão assumiu o governo do estado e nomeou Juscelino Barbosa seu
secretário de Finanças. Barbosa era natural da cidade de Chapada do Norte,
região nordeste de Minas, e havia estudado no Seminário de Diamantina. O
presidente da República, Afonso Augusto Moreira Pena, faleceu em 14 de junho de
1909. O vice-presidente, Nilo Procópio Peçanha, assumiu o governo federal e
nomeou Francisco Sá seu ministro da Viação, Transportes e Obras Públicas. Sá
era natural de Grão Mogol, cidade da região norte de Minas. Também havia
estudado no Seminário de Diamantina. A ação conjunta de Barbosa e Sá, movidos
pelos laços afetivos que desenvolveram com Diamantina, culminou com a
assinatura do decreto federal nº 7.455, em 08 de julho de 1909, pelo ministro e
pelo presidente da República, autorizando a construção de um ramal da Estrada
de Ferro Central do Brasil até nossa cidade.
O descaso do
ex-prefeito Gustavo Botelho para com o busto de personalidade de tamanha
importância, não somente para Diamantina, mas para toda a região norte e
nordeste mineira, foi uma agressão ao nosso patrimônio. Aliás, Gustavo Botelho
é também o grande responsável pelo soterramento do virador de máquinas da
Estrada de Ferro. Retirar ou não o busto de Francisco Sá da praça do Bonfim,
que estava sendo reformada na época, é outra discussão. Talvez fosse até melhor
que ficasse edificado no mirante da virada da avenida homônima, até porque a
praça do Bonfim chama-se, na verdade, Monsenhor Neves. Mas o fato é que esse
busto jamais poderia ser enviado parra a gaveta do esquecimento, como ocorreu
com o virador.
Contudo,
tentar reparar um erro com outro erro ainda mais grosseiro, num ato arbitrário
e inconseqüente de final de mandato do prefeito Paulo Célio de Almeida Hugo,
ajustado muito mais com a vaidade exacerbada do que com o sentido de
preservação patrimonial, é querer remendar o soneto. A poesia, que já era de
péssima qualidade, acabou se tornando sofrível.
Nos últimos
dias, as discussões giraram em torno de se retirar ou não se retirar o pirulito;
de se colocar ou não se colocar aquele aterro circular; se ele deveria ser
menor ou do exato tamanho em que foi projetado; de se retirar ou não se retirar
os estacionamentos nas áreas laterais. Houve até quem defendesse a idéia de se
deixar tudo como estava e adicionar um monte de vacas ao trânsito, para ficar
bastante parecido com a Índia. Tudo bobagem, pois algo precisava ser feito, e
não se pode negar que o trânsito melhorou. Parabéns ao prefeito Paulo Célio!
Mas aí ..., o busto de Sá foi colocado no largo de João!
Em 05 de maio
de 1844, o padre Antônio Ferreira Viçoso, superior geral dos lazaristas no
Brasil, foi consagrado bispo da diocese de Mariana. Coube a Dom Viçoso iniciar
a reforma da Igreja Católica em Minas
Gerais. Era necessário se colocarem em
prática os cânones estatuídos pelo Concílio de Trento. A Igreja Católica
empreendia esforços no sentido de conquistar sua auto-afirmação como
instituição autônoma, soberana e independente em todo o mundo, centralizada na
autoridade do Papa como seu chefe supremo. Como as normas a serem adotadas eram
definidas em Roma, esse movimento ficou conhecido como o processo de
“romanização” da Igreja Católica, que se esforçava em unificar suas ações no
mundo, tomando os ditames de Roma como princípios de identidade.
A Coroa
portuguesa, respaldada pelo regime do Padroado estabelecido com a Igreja
Católica desde 1456, impediu que as ordens religiosas regulares se
estabelecessem em Minas Gerais. No
território mineiro predominaram as associações religiosas de formação leiga.
Portanto, a essência da reforma iniciada por Dom Viçoso consistia em se
imprimir os traços fundamentais do perfil tridentino nos sacerdotes. Por
conseguinte, a reforma teria que passar, necessariamente, pelo seminário, num
ambiente austero de disciplina, que aprimorasse o caráter e o aprendizado do
clero, oferecendo-lhe sólida formação moral, intelectual e eclesiástica.
Estrategicamente,
Dom Viçoso enviou quatro de seus melhores sacerdotes para estudar na Europa e
os preparou para a missão de ajudar a avançar no Brasil a reforma que se
buscava. Depois de prontos, o padre Luis Antônio dos Santos assumiu a diocese
do Ceará; o padre Pedro Maria de Lacerda assumiu a diocese do Rio de Janeiro; o
padre Silvério Gomes Pimenta assumiu, posteriormente, o lugar de Dom Viçoso; o
padre João Antônio dos Santos assumiu a diocese de Diamantina.
Foi a primeira
diocese que se desmembrou de Mariana, com o objetivo expresso de ordenar a
reforma católica em todo o norte e nordeste de Minas Gerais. Por essa razão,
posteriormente, nasceram as dioceses de Araçuaí e de Montes Claros, como também
a prelazia de Paracatu, sufragâneas da diocese de Diamantina. Dom João recebeu,
portanto, missão árdua. Ao ser consagrado bispo, sua mais urgente e precípua
missão foi edificar o seminário, isso sob obrigação grave.
Ao Dom João
Antônio dos Santos coube toda a edificação material da Igreja Católica em Diamantina. Além
disso, deixou o caminho preparado para a edificação intelectual da diocese,
realizada pelo seu sucessor, Dom Joaquim Silvério de Souza. Dom João escolheu o
antigo largo do Curral, na época considerado subúrbio de Diamantina, para dar
início à reforma, pois foi onde construiu o seminário, o eixo principal de
tudo. Assim, puxou a cidade para a parte alta do morro de Santo Antônio, cujo
espaço recebeu, logo depois, o nome do prelado.
Agora, nos
aparece o prefeito Paulo Célio, tomado de uma realeza maior que a do rei, num
ato arbitrário, colocando o busto de Francisco Sá no largo do morro de Santo
Antônio. Esse local, de fato, de direito, de obviedade, pertence ao Dom João
Antônio dos Santos, porque representa todo um esforço mundial de uma
instituição milenar em melhorar a condição dos multiplicadores de seus cânones.
O poder é
passageiro e efêmero! Quatro anos esgotam-se rápidos, são apenas como o dia de
ontem que passou! E agora José? Resta ao prefeito Paulo Célio deixar a
prefeitura melancolicamente, com cerca de 80% de desaprovação da população
diamantinense. E o mais fantástico sobre esse último ato do prefeito é que a porta
de saída desemboca somente em um desfiladeiro estreito: as teias implacáveis do
crivo da história.
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