Abaixo, reproduzimos o belo texto publicado ontem pelo Saul Moreira no site Micuim.Org. O Passadiço Virtual é gentilmente citado pelo Saul a partir de um desabafo que fizemos sobre o abandono em que se encontrava o mirante do Cruzeiro da Serra. Nosso texto (leia aqui) foi publicado em 21 de janeiro deste ano e continua atual. Na época prometi não voltar lá, mas não resisto e sempre levo meus amigos visitantes para uma visão muito bonita da cidade e seus arredores. Infelizmente, meu caro amigo Saul, "não é só fita". Além de uma paisagem deslumbrante, lá você encontrará cacos de vidro, lixo, "camisinhas", pichações, falta de iluminação e descaso com um patrimônio da cidade.
E assim, a cidade vai perdendo seus encantos. Quer outro exemplo? Ontem passei pela Rua da Caridade e presenciei o corte das árvores do seu canteiro central (foto). Me disseram que as raízes das árvores comprometem as estruturas da casas. Mas fica a pergunta: será que plantarão uma nova espécie mais adequada ao local? Onde está a tal onda verde? E a grande árvore que ficava próxima à rodoviária e que também foi cortada?
Outro exemplo simples e singelo para essas perdas. Recentemente publicamos aqui que o Ministério Público estava reformando um casarão na Rua Macau do Meio para funcionar como sua sede (leia). O post recebeu um comentário muito sensível da Sâmia (Treliça) , parecido com as boas às lembranças relatadas pelo Saul: "Acredito na recuperação do imóvel, mas lamento tanto pelas parreiras centenárias... A antiga proprietária sempre nos permitia apanhar folhas para os charutos. Das minhas boas lembranças..
São essas lembranças e histórias que vão se perdendo. Um cruzeiro não é somente uma cruz no alto de um morro; uma parreira não é somente uma planta. São dotados de sentidos e significados que transcendem a sua presença física e representam muito para a percepção que as pessoas têm do espaço em que vivem. Como dito pelo Saul, sou "neomorador do velho Tijuco", não tenho essas boas lembranças guardadas na memória, mas vejo com meus olhos uma cidade assistindo de forma passiva a deteriorização de seus espaço e sua cultura. Infelizmente, não é só fita....
Mas ainda há esperança. Recentemente, andando pelo centro da cidade vi as portas do andar inferior do Museu do Diamante abertas. Era manhã de uma terça-feira, dia normal de trabalho, mas tive a oportunidade de conhecer o trabalho do Sr. Luiz Cinza e sua arte primitiva. Segundo me disseram, trata-se de um profissional que pinta, além de faixas e letreiros, belos quadros. Pude constatar que sua obra retrata com extrema beleza e simplicidade uma Diamantina viva, bela e colorida. Esse trabalho do Museu do Diamante, coordenado pela Lilian Oliveira, é um exemplo da importância e da necessidade dessa preservação e resgate da memória e das pessoas. Sem isso, a cidade se transforma em um amontoado de carros, motos, prédios, pessoas e coisas...
Quem dera fosse só fita...
Autor: Saul Moreira, no Micuim
Há uns tempos li no “Passadiço Virtual” artigo em que o Fernando Gripp ‒ ao que me parece, sério, crítico e dedicado apreciador e neomorador do velho Tijuco ‒ falava de sua má impressão sobre o descuido com o mirante do Cruzeiro. Lamentável notícia! Enquanto lia, vinham-me à memória os passeios que fazíamos lá, a pé; da construção do Jardim, um pouco abaixo do dito; de uma turma grande e alegre que para lá ia à noite fazer serenata para aquela Diamantina que dormia cedo e que sonhava muito.
Meus irmãos, de férias, meus cunhados, primos, primas, seus amigos. Alguns me carregavam, menino demais, às costas, de cavalim. O Raimundim era quase sempre o voluntário, com sua sempre moleque boa vontade e sua disposição bem humorada e invejável. Ou era o Hélio ou o Tulisca, os “cavalinhos” a me transportarem, às vezes meio sonolento, mas alegre, atento, confiante.
Era acordeom, violão, cantoria… A “Perpétua”, que não cheirava, misturada a “Chega de Saudade”; o folclórico “Zum-zum” junto com a então novíssima
“O Amor, o Sorriso e a Flor”. O Roger ao violão intercalando suas saudosas baladas norte-americanas com a sutileza da nova música popular que nascia do violão inimitável de João Gilberto.
E dá-lhe Agostinho dos Santos, Dolores Duran, e mais da flor que não cheira (e não fede, acrescentava um gaiato). E versos de improviso, e mais sonhos no meio do mar, e o “Samba do Arnesto”, novidade trazida pelo Dimas de um então ainda pouco conhecido Adoniran. E o espetacular aparelho levado um dia pelo Roberto Ribas: uma vitrola portátil, à manícula… Oitava maravilha, embora nem tão portátil assim, perto daquelas radiolas imensas de então.
Lá embaixão, escorriam pelas ladeiras e pela bruma os segredos e as poucas luzes da Cidade, numa paisagem que se queda imutável na minha memória. E a gente sem saber direito se era o panorama que nos espiava ou se nós é que, distraidamente, o admirávamos, tamanha a identidade de todos com o ambiente, com a beleza, com a poesia embriagante.
Hoje, claro que acredito no Gripp e creio que ele tenha narrado um fato. Mas como eu gostaria que fosse só fita… Como gostaria que Diamantina ainda viesse a receber tantas canções, entoadas lá do Cruzeiro, a embalar seu nem tão sereno sono de hoje em dia. Canções em forma de acalanto para essa gente que, mesmo dormindo mais tarde, há de ser eterna sonhadora…
(SM – Out/2010)
Oi, Gripp! Grato pela transcrição do texto. Conto com que você continue sempre com esse olhar atento e esse nobre coração aberto para as coisas de nossa Diamantina. Óbvio que, envaidecido, reproduzi esse seu artigo no nosso Micuim. Grande abraço. Saul
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