segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Helena Morley nos arquivos da revista Veja

Fonte: Revista Veja maio/1998

Entre os anos de 1893 e 1895, uma adolescente mineira, moradora de Diamantina, se propôs a manter um diário despretensioso, como tantas meninas haviam feito antes dela e continuariam a fazer depois. Esse texto viria a público cinco décadas mais tarde, em 1942, quando a autora já entrava na velhice como senhora Alice Dayrell Caldeira Brant. Assumindo o pseudônimo de Helena Morley, ela entregou ao editor os papéis, acompanhados de uma nota que declarava ambições modestas: mostrar "às meninas de hoje a diferença entre a vida atual e a existência simples que levávamos naquela época". Tão logo caiu nas mãos dos primeiros leitores, no entanto, o livro ganhou dimensões maiores. Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade louvaram suas qualidades. O escritor francês Georges Bernanos e a poetisa americana Elizabeth Bishop se encantaram com seu sabor, e a última chegou a traduzi-lo para o inglês. Obra sui generis, que um dos melhores críticos brasileiros, Alexandre Eulálio, considerou "clássica" desde o nascimento, Minha Vida de Menina retorna agora às livrarias, em nova edição (Companhia das Letras; 335 páginas; 23,50 reais), depois de alguns anos fora de circuito.

Tantos elogios para uma obra adolescente acabaram por despertar dúvidas. Na nota introdutória, Helena Morley, adulta, assegura que pouquíssimas mudanças foram feitas no original. Alguns leitores, porém, já sugeriram que a intervenção foi mais profunda. Outros insinuaram que um literato experiente — talvez Mário Brant, o marido da autora — havia providenciado uma hábil revisão. Esse mistério ainda está para ser resolvido, pois a família de Helena jamais liberou seus manuscritos para análise. Diante do ceticismo, a melhor resposta continua sendo a de Guimarães Rosa: mesmo que a autoria de Minha Vida de Menina fosse uma farsa, estaríamos diante de um caso inaudito, "o mais pujante exemplo de reconstrução da infância".

País civilizado — Uma voz recente no coro dos admiradores de Helena é a do crítico Roberto Schwarz, que dedicou um longo ensaio à autora em seu livro Duas Meninas. Para Schwarz, "não há quase nada à altura deMinha Vida de Menina no cenário da literatura brasileira do século XIX". Mesmo o Machado de Assis da primeira fase — embora não o da segunda, à qual pertencem obras-primas como Dom Casmurro — sai perdendo na comparação. O grande poder do livro de Helena Morley decorreria da dicção clara e vigorosa, que contrasta com os rebuscamentos e as pretensões filosóficas em que mergulharam até os grandes autores do período, como Euclides da Cunha ou Aluísio de Azevedo.

Mas os diários seriam importantes, acima de tudo, por capturar um momento especial na História brasileira. Todas as relações de poder e classe da sociedade antiga acabavam de ser desfeitas pela Abolição e pela proclamação da República. Em sua narrativa, que casa espontaneidade e inteligência, a jovem Helena não deixa de captar essas transformações, mas de maneira inesperada. Seu livro pinta um cenário em que, apesar da crise, proprietários, agregados e escravos libertos convivem em certa harmonia. Como nota Schwarz, há uma "força de ligação" no modo como Helena encara o mundo, contrastando com a estupidez e a violência da velha ordem escravocrata. Minha Vida de Menina retrata um Brasil simpático e civilizado. A utopia de um "Brasil legal".

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