segunda-feira, 10 de junho de 2013

Sociedade União Operária Beneficente de Diamantina comemora aniversário

Leia abaixo o discurso de Wander Conceição durante a solenidade de comemoração do 122º aniversário da Sociedade União Operária Beneficente de Diamantina.

IMG_4534Iniciada no ano de 1993, pelo então superintendente da Fundação Cultural e Artística de Diamantina, o músico Ivo Pereira da Silva, a caminhada para levar Diamantina a ser reconhecida pela UNESCO como “Patrimônio Cultural da Humanidade” atingiria seu objetivo no dia 01 de dezembro de 1999, depois de intenso trabalho realizado por um grupo enorme de pessoas que se foram engajando na campanha. Durante esse processo, dentre várias situações identificadas pelo Monsenhor Walter Almeida, e referendadas pela Comissão por Diamantina Patrimônio da Humanidade, três elementos foram evidenciados como altamente relevantes para justificar a candidatura de Diamantina, em razão de seus aspectos de elevada singularidade. Foram eles essenciais para a composição do conjunto de justificativas reunidas no Ensaio Histórico-Estratégico, escrito pelo professor Antônio Carlos Fernandes, de saudosa memória, então chefe do Departamento de História, da extinta Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina. O referido ensaio foi repassado ao IPHAN, como indicativo para formatação do dossiê a ser construído e enviado à UNESCO, sobre cujo teor, seria avaliada a candidatura da cidade ao título mundial. Nesse ensaio estratégico constavam, dentre outros elementos constitutivos de sua proposição, a arquitetura barroca de Diamantina, sua musicalidade e sua historiografia, como principais elementos singulares, que deveriam ser preservados e salvaguardados, para conhecimento das gerações futuras.

Quando, no ano passado, a União Operária Beneficente de Diamantina se propôs a fazer uma restauração de tamanho porte, nesta sede que hoje, totalmente restaurada, está sendo oficialmente reintegrada ao conjunto arquitetônico barroco estabelecido na região central da cidade, esta instituição centenária caminhou, com extrema competência, em sintonia com o que há de mais sensato e coerente com a condição de Patrimônio do Mundo, que Diamantina, orgulhosamente, ostenta.

A primeira ação efetiva para salvaguardar as edificações dos séculos XVIII e XIX de Diamantina aconteceu por intermédio de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Sendo o braço direito do governador Benedito Valadares, o jovem deputado federal agiu junto ao governo do estado para conseguir reunir sobras orçamentárias, distribuídas por diversas diretorias, e transferi-las para sua cidade natal, gradativamente, com o propósito de retirar Diamantina da letargia, da desesperança e da falta de perspectiva em que a cidade se encontrava no início da década de 1930.

O problema mais urgente que sufocava Diamantina era seu isolamento dos municípios circunvizinhos, visto que, além da estrada de ferro que fazia sua ligação com Belo Horizonte, os caminhos de conexão com suas áreas distritais e as demais regiões do estado de Minas Gerais eram apenas trilhas abertas nas montanhas, compostas de vários trechos de difícil mobilidade, em terreno pedregoso e irregular. Por meio das verbas que Juscelino Kubitschek conseguiu junto ao governo do estado foi possível abrirem-se estradas da sede para todos os seus distritos, para as saídas regionais nas direções norte e sul, e construírem-se as pontes essenciais. O passo seguinte foi a revitalização do sistema de energia elétrica que abastecia Diamantina, até então, fornecida pela usina de Santa Maria, estabelecida no distrito de Extração, em situação já obsoleta e insuficiente para abastecer a cidade, cujos bairros periféricos se expandiam. Juscelino Kubitschek intermediou o processo de modernização da Sociedade Industrial Hulha Branca que, estabelecida na barragem do rio Paraúna no então distrito de Gouveia, passou a fornecer a energia para Diamantina, com capacidade extremamente superior à da usina anterior. Essa ação impulsionou o desenvolvimento do comércio, ao possibilitar a fixação de pequenas empresas na cidade, além de ter criado condições para a chegada da luz elétrica em bairros periféricos, mais carentes.

Contudo, se por um lado a cidade passou a respirar de forma menos sufocada, por outro, as novas edificações características do século XX começaram a invadir o espaço secularmente preenchido por sobrados e casarões antigos. Ao perceber que o conjunto arquitetônico barroco edificado em Diamantina poderia desaparecer, frente às novas construções modernas que avançavam de forma avassaladora sobre a cidade, Juscelino Kubitschek utilizou de seu prestígio junto às instituições federais e recorreu a Rodrigo Mello Franco de Andrade, então diretor geral do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN. Conseguiu que o conjunto urbano de Diamantina fosse tombado pelo referido órgão, em 16 de maio de 1938. “Estava salva a cidade. Já ninguém poderia construir em seu perímetro, sem projeto aprovado naquele Serviço Federal”.

Salvaguardada, naquele momento, a arquitetura construída no centro histórico, esse conjunto arquitetônico singular pôde ser apresentado à UNESCO seis décadas depois, como justificativa forte para que Diamantina se tornasse Patrimônio Cultural do mundo. Em um terreno montanhoso, árido, estéril, pedregoso, irregular, no mais longínquo do ocidente, reproduziu-se uma arquitetura em consonância com aquilo que de mais moderno se edificava na Europa. Esse fenômeno teria que ser preservado a todo custo, para conhecimento das novas gerações.

O esforço gigantesco que foi despendido para esta restauração da sede da União Operária está, pois, em perfeita sintonia com o raciocínio exposto. As luzes que emanam desta Casa hoje estão oferecendo brilho ainda maior a um conjunto arquitetônico extraordinário; estão contribuindo de forma notável para a preservação de um acervo preponderantemente barroco, riquíssimo, de rara beleza, enaltecido, mundo afora, por pesquisadores, cientistas, arquitetos, escritores e poetas. A título de ilustração, observe-se a resposta do arquiteto Lúcio Costa, autor do projeto do Plano Piloto de Brasília, ao ser questionado, por sua filha, onde havia adquirido a síntese entre tradição e modernidade reproduzida em seus projetos arquitetônicos, traço tão característico de sua produção artística. Respondeu o arquiteto: “A primeira coisa, a coisa básica foi o encontro com Diamantina, em 1924. Era aquela beleza sem esforço”. Portanto, uma contribuição de grande vulto para a recomposição desta “beleza” natural, mundialmente festejada, está acontecendo hoje, ao ser devolvido, oficialmente, à comunidade diamantinense, o prédio da sede da União Operária Beneficente de Diamantina, todo restaurado.

Quanto ao quesito musicalidade, que também foi um dos pilares da referida justificativa apresentada à UNESCO, identificado como o elemento cultural de origem européia mais expressivo, que se fixou e se perpetuou em Minas Gerais, a União Operária, ao longo de sua existência, ofereceu grande contribuição igualmente.

Conforme publicações do musicólogo alemão, Francisco Curt Lange, os compositores mineiros do século XVIII ultrapassaram, em quantidade e qualidade, as composições dos músicos portugueses, e muitas de suas obras compostas em Minas Gerais são comparadas às composições de grandes mestres europeus de seu tempo. No entorno da liturgia da Igreja Católica, disseminada no território mineiro por intermédio do número elevado de associações religiosas multiplicadas na capitania, desenvolveu-se um ambiente musical poderoso e altamente qualificado, pois havia ouro e diamantes o bastante para se pagarem os músicos, que se mantiveram na condição de estritamente profissionais, sem a necessidade de se apegarem a outro ofício, para garantirem sua sobrevivência.

Sobre esse movimento musical mineiro do século XVIII, que também teria que ser preservado para conhecimento das gerações vindouras, Francisco Curt Lange afirmou que foi um fenômeno artístico sem precedentes na formação de todo o continente americano, e registrou a seguinte observação:

“Minas Gerais, como nova região brasileira, descoberta e levada durante cem anos a um fantástico desenvolvimento, logrou a maior concentração humana durante o período colonial, possuiu o maior número de objetos de arte jamais visto anteriormente, e teve uma grei, jamais igualada nas Américas, de professores da arte da música.

O profissionalismo musical em Minas Gerais é um capítulo tão honroso da História da Música no Brasil, que se pode insistir em sua inegável superioridade sobre a música que se exercia na Corte e na Bahia, tanto em intensidade, como em curiosidade por obras contemporâneas européias”.

Em conseqüência direta do colapso porque passou a mineração em Minas Gerais ao final do século XVIII, o lugar social do músico diamantinense deixou de ser as corporações voltadas para o culto religioso e passou a ser o interior das Bandas de Música no século XIX, as quais mantiveram a tradição musical mineira, possibilitando sua perpetuação até os dias atuais. Foi nesse contexto que a União Operária abrigou ninguém menos que Antônio Ephygênio de Souza, que se tornou conhecido em Diamantina como maestro Paraguay, em função de sua participação na guerra verificada entre o Brasil e aquele país, onde o músico serviu no 23º Corpo de Voluntários. A qualidade reproduzida em suas composições musicais marcou seu nome junto ao de João Baptista de Macedo, o grande maestro Piruruca, como os dois maiores expoentes do ambiente musical diamantinense no século XIX.

Radicado em Diamantina ao final da Guerra do Paraguai, Antônio Ephygênio de Souza tornou-se membro participativo de várias entidades de classe na cidade, dentre as quais, foi vice-presidente da União Operária. Como grande contribuição para esta instituição, compôs o seu hino, orgulhosamente tocado em suas sessões oficiais. Nos primeiros tempos, pela Banda Corinho.

Essa tradição musical diamantinense foi perpetuada no seio da União Operária, desde a sua fundação. Nos eventos de maior expressividade ocorridos nesta Casa, primava-se sempre pela manutenção do canto executado pelas senhoras e senhoritas, posicionadas nas sacadas e janelas deste sobrado. Com o desaparecimento das bandas civis, ocorrido nos primeiros decênios do século XX, assumiu a perpetuidade dessa cultura dentro da União Operária, a notável Banda de Música do 3º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais, coincidentemente fundada em 1891, portanto, com a mesma idade desta nobre instituição operária. De tempos a esta parte, as sessões oficiais têm recebido, por vezes, a honrosa contribuição da Banda Mirim Prefeito Antônio de Carvalho Cruz. Acrescente-se a essas informações que a União Operária chegou a montar sua banda de música própria, durante a década de 1940, cujo projeto não foi adiante, em decorrência das grandes necessidades financeiras para se manter em atividade uma corporação desse gênero.

Não bastassem as singularidades até aqui apresentadas – que, observe-se bem, têm que ser preservadas para conhecimento das futuras gerações –, a União Operária construiu uma história invejável, digna dos mais efusivos louvores, pelos capítulos singulares de superação, que foram escritos a partir deste magno salão. Afirmou Dom José Newton de Almeida Baptista, 3º arcebispo de Diamantina e edificador da Arquidiocese de Brasília, que “a história se faz através da acumulação penosa de experiências valorizadas, e não como um salto no escuro, mediante decisão desvinculada do passado”. Portanto, a fundação da União Operária não aconteceu isolada dos problemas gravíssimos que assolavam a população de Diamantina ao final do século XIX. Ela nasceu num momento da busca pela organização da classe operária no Brasil, no início da República Velha, momento em que uma massa de seres humanos acabara de ser jogada às ruas, sem perspectivas de trabalho e de renda. Eram escravos libertos do cativeiro, em sua maioria esmagadora, analfabetos e sem o mínimo de amparo social, mas que agora teriam que sobreviver em meio aos leões, empunhando apenas armas rudimentares. A busca pela organização da classe operária era, entretanto, somente uma tentativa, ainda muito acanhada, de se tentar combater uma das páginas de crueldade mais desprezíveis da história da humanidade.

A motivação para a fundação da Sociedade União Operária Beneficente de Diamantina foi detalhadamente relatada, para os operários e representantes das mais variadas classes da sociedade diamantinense, desta mesma tribuna em que hoje recebi a honra e o privilégio de utilizar, por Juscelino Kubitschek de Oliveira, na noite de 1º de junho de 1944, quando o então prefeito de Belo Horizonte foi o orador oficial, durante as comemorações do 53º aniversário desta Casa. Relatou Juscelino Kubitschek em seu pronunciamento a seguinte passagem:

“Nesta cidade, numa noite longínqua de 1891, há mais de meio século passado, descia as escadas de uma residência em festa, sob o peso da humilhação, um operário que a sociedade repudiara, julgando-o de acordo com os cânones da época, indigno de ali penetrar.

À porta, encontra quatro conterrâneos, aos quais expõe a afronta aviltante que recebera. Os quatro se reúnem a mais cinco, que tangidos pelas virtudes profundas e fundamentais do caráter de nossa gente, fundam esta Sociedade, que doravante resguardaria de qualquer agressão, leais e devotados diamantinenses, sob cujos músculos, repousavam a energia construtiva de nossa cidade”.

Relatava Juscelino Kubitschek um fato passado, havia 53 anos. Contudo, muito provavelmente, ainda não soubesse ele que, há menos de três meses antes daquele seu relato, exatamente no dia 19 de março de 1944, havia sido fundado em Diamantina o Clube União Democrata, a partir de outra afronta social, também aviltante. A condição primordial para se fazer parte do quadro de sócios do Clube Acayaca era a comprovação de uma situação financeira exuberante. Não obstante um senhor negro possuir essa condição primordial, em decorrência de sua desenvoltura para atuar como diamantário na cidade; não obstante seu caráter íntegro, sua família digna, filhos com excelente grau de estudo, sua proposta para fazer parte do quadro social do Clube Acayaca foi negada, porque aquele senhor carregava o peso de ter nascido no seio de uma família negra. Essa foi a motivação extremada que levou um grupo de diamantinenses indignados a fundar o Clube União Democrata, impulsionados pela mesma sensação de desprezo social porque haviam passado aqueles homens que fundaram a União Operária.

Para se compreender porque tantas ações como essas se realizaram em Diamantina com tamanha freqüência, desde sua fundação, perpetuando-se continuadamente pelos séculos seguintes, há que se recorrer à historiografia da formação política e social do Arraial do Tijuco e seu desdobramento em direção aos dias presentes. Inclusive, só, e somente só, por intermédio desse conhecimento, se poderá compreender o ambiente social, político e econômico que envolvia Diamantina em 1891, motivador de arbitrariedades indecorosas, similares àquela relatada por Juscelino Kubitschek, que motivou a fundação da União Operária.

Já na implantação do poder administrativo público no Arraial do Tijuco, toda sua estrutura foi estrategicamente forjada para dar suporte e alimentar os interesses particulares de uma minoria privilegiada. A historiadora Júnia Ferreira Furtado, ao estudar vasta documentação para interpretar, com metodologia científica, o famoso Regimento Diamantino, mais conhecido pelo codinome de “Livro da Capa Verde”, esclareceu que os indivíduos pertencentes à classe dominadora se aproveitavam das rivalidades entre os intendentes e os governadores, posicionando-se a favor da situação mais confortável para consolidação de seus interesses pessoais, usufruindo do poder daquelas autoridades, com o objetivo exclusivo de defender e alimentar suas fortunas e proteger seus apadrinhados. Em conseqüência disso, a população do Tijuco foi dividida de maneira muito nítida. De um lado, uma classe dominante diminuta, encastelada em duas instâncias rivais de poder, cada qual preocupada apenas em satisfazer suas conveniências, num sistema político, econômico e social perverso, em que as regras eram ditadas pelo contrabando dos diamantes. De outro lado, uma massa enorme de seres humanos, representada por negros, escravos e forros; homens livres desocupados; os despossuídos e os desclassificados sociais, originados nas próprias condições de marginalização, impostas pelo processo de desenvolvimento da mineração.

Ocorrendo a independência do Brasil em 1822, adveio o tempo do Império, durante o qual, as normas de convívio social estabelecidas no período anterior não se alteraram em Diamantina. O aparelho público continuou sendo utilizado como veículo essencial para a manutenção de fortunas particulares, distante de sua função precípua de ser o principal instrumento para formatação de um plano de desenvolvimento coletivo. A pequena classe privilegiada se rivalizou agora sob os rótulos de conservadores e liberais, disputando entre si as benesses do poder público, para que, por intermédio dele, pudessem sustentar seus interesses particulares, abrigando seus familiares em cargos estratégicos e protegendo seus apadrinhados. Na outra ponta da existência humana, uma multidão de desfavorecidos, abandonada ao esquecimento.

O fim do Império se deu em 1889, quando ocorreu a proclamação da República no Brasil, portanto, dois anos apenas, antes da fundação da União Operária em Diamantina. As publicações do historiador Marcos Lobato Martins registram que no início do período republicano, os interesses de dois grupos diferenciados de “homens de negócio” é que estavam em jogo em Diamantina. Do primeiro grupo faziam parte os homens que detinham a chamada “riqueza antiga”. Eram homens que se dedicavam a atividades tradicionais para acumular fortunas, visto serem detentores de terras de cultura e de pastagem, lotes de ouro e de diamantes, casas de comércio e estoques de mercadorias, escravos e, principalmente, dinheiro vivo ou na forma de dívidas por empréstimos realizados a terceiros. Do segundo grupo faziam parte os homens que detinham a chamada “riqueza nova”. Eram homens de caráter empreendedor, que se dedicavam à aplicação e ao rendimento do capital, investindo em empresas industriais e de serviços. Dentre os homens que constituíam esse segundo grupo, aqueles que se dedicaram, por exemplo, à navegação do rio das Velhas e à construção de fábricas de tecido, como a fábrica edificada no povoado de Biribiri.

Naquele momento, o avanço industrial nos países considerados de primeiro mundo exibia um cenário de exploração extrema da mão de obra operária, com prática contumaz de salários baixíssimos, expondo o trabalhador a viver nas mais precárias condições. Embora o discurso proferido por Juscelino Kubitschek em 1944 nesta tribuna de honra, tenha sido, em grande parte, um canto de evocação à nobreza do povo diamantinense, ele não se furtou a discorrer sobre a realidade que consumia o operariado, de forma global, no citado período. Eis o que Juscelino proferiu neste recinto:

“A humanidade regida por velhas fórmulas, tendo, através de um longo ciclo de vida fácil, esquecido os ensinamentos cristãos, se dividira em castas, da qual a mais humilde e desprezada era exatamente a do operariado. Nobres e burgueses se disputavam a posse do mundo, sob a proteção invencível do dinheiro. O direito era uma lâmina brilhante, porém de um gume apenas. E este se voltava, na maioria das vezes, contra o operário, contra o trabalhador silencioso, que nas horas de amargura de uma existência sempre falhada, ajudava a construir, sem que o reconhecessem, a grandeza e a prosperidade do Universo”.

Nesse contexto, em que os operários, mundo afora, procuravam cada vez mais se organizar em busca de melhores condições de vida, criando associações várias de auxílio mútuo, é que nasceu em Diamantina a União Operária Beneficente. A escravidão já não era explícita no Brasil, pois, oficialmente, havia sido abolida em 1888. Entrementes, a despeito dos artigos da lei da abolição, a prática escravocrata permanecia, de forma dissimulada, como uma nódoa pegajosa que não se desintegra, visto que ainda não existia legislação, para regulamentar as relações entre patrões e empregados.

A União Operária Beneficente de Diamantina se organizou, instituindo-se também nos moldes de uma sociedade de auxílio mútuo. Dentre as inúmeras ações que praticou, passou a oferecer pensão para viúvas e filhos dos operários e oferecer condições dignas de enterramentos às famílias de seus associados. Quanto à instrução aos trabalhadores, adiantou-se ao poder estatal, que inaugurou a instrução básica pública em Diamantina, somente ao final do ano de 1907, por meio da criação do Grupo Escolar Matta Machado. Já em 1894, a União Operária mantinha em suas dependências um Liceu de Artes e Ofícios, com oficinas que ajudaram na formação profissional de seleiros, sapateiros e alfaiates, dentre outros trabalhos especializados. Logo nos primeiros anos do século XX vieram a fundação das escolas noturnas, para alfabetização e instrução dos operários e de seus familiares, e a fundação da biblioteca própria da instituição, cujos livros levaram instrução a várias pessoas que se tornariam personalidades de destaque, posteriormente.

Testemunha maior desse benefício oferecido pela União Operária, Juscelino Kubitschek terminou o curso intermediário no Seminário em 1917, com apenas 15 anos. Sem perspectivas para avançar nos estudos em Diamantina, percorreu toda a cidade à procura de emprego, “de armazém em armazém, de loja em loja, de venda em venda”. Sem conseguir colocação, resolveu que iria estudar por conta própria, das seis da manhã às dez da noite, todos os dias, religiosamente. Foi nesse período de sua vida que Juscelino Kubitschek se dirigiu à biblioteca da União Operária, detentora de cerca de 300 volumes, e leu todos os exemplares de sua coleção. Iniciava-se naquele momento, no seio desta notável Casa, a modelagem de um presidente da República do Brasil. Num ato de reconhecimento, de profunda gratidão à União Operária, por esse amparo recebido em momento de grandes incertezas de sua adolescência, Juscelino Kubitschek fez um depoimento eloqüente aos operários, naquele pronunciamento de 1944:

“Nunca se perderão na minha memória reconhecida os silenciosos e tranqüilos serões que nesta casa eu fazia, recebendo dos velhos livros da modesta biblioteca que aqui mantínheis, as primeiras sementes da reduzida ilustração que vim a conquistar.

Algumas recordações juvenis se infiltram e jamais se apagam no painel de nossa imaginação. Assistindo, há pouco tempo, a exibição do grande filme Ben Hur, subitamente, mergulhei-me num grande sonho, no halo do qual eu me via entrando por uma noite fria e chuvosa na sala sobre a qual estamos e onde em pequenas estantes se alinhavam as lombadas acolhedoras de vossos livros. E foi ali, precisamente, que pela primeira vez pude ler, sob as mais vivas emoções, o delicioso romance que fixaria em minha memória, para sempre, as horas de encantamento que através de vossa modelar organização me foram dadas desfrutar. Não tenho expressões, pois, para vos agradecer”.

Tudo isso se passou no tempo da República Velha. Na disputa para o comando político de Diamantina durante aquele período, venceram os homens de negócio representantes da “riqueza antiga”, os quais seguiram manipulando o poder público com o intuito primaz de alimentar seus interesses particulares e favorecer seus apadrinhados. Foram capitaneados pelos desmandos do senador Olímpio Mourão por mais de 30 anos, marcados pela prática de um coronelismo cruel, exercido com mão de ferro, sobre uma população marginal paupérrima. Somente a revolução armada de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder federal, conseguiu uma ruptura momentânea nessa relação político-social perversa, estabelecida em Diamantina.

Getúlio Vargas encontrou um cenário de exploração humana, num país sem legislação trabalhista. As jornadas de trabalho eram demasiadamente longas, não havia férias, nem aposentadoria, nem descanso semanal remunerado, não havia proteção para o trabalho de mulheres e crianças, e em muitas situações, os trabalhadores tinham que se submeter ao convívio com ambientes totalmente insalubres. Getúlio criou um conjunto de normas para auxiliar a classe operária, iniciando uma mudança significativa que iria impor, mesmo que de maneira ainda acanhada, um pouco de justiça social nas relações trabalhistas. Posteriormente, essas normas seriam compiladas em um único texto de lei, editada com o nome de Consolidação das Leis do Trabalho. Mas esses avanços não foram construídos sem relações tensas, num ambiente social marcado pela calmaria. Correntes ideológicas das mais diversas foram seguidas e espalharam-se pelo país os movimentos grevistas e o anarquismo.

Sem embargo da importância histórica desses movimentos, há que ser destacado que, desde os seus primórdios, a União Operária jamais fez a opção de trilhar caminhos salpicados por atitudes extremistas, mas escolheu as sendas da doutrina social cristã para nortear sua jornada, empunhando uma bandeira de luta marcada pelos preceitos: “Deus, Honra e Trabalho”.

A doutrina social cristã foi definida por Dom José Newton como o único caminho capaz de “encerrar a solução de todos os problemas, amainar todas as tempestades, reconfortar os corações e apontar a verdadeira finalidade da vida presente”. Exatamente 15 dias antes da fundação da União Operária, Sua Santidade o Papa Leão XIII publicava a encíclica Rerum Novarum, carregada de um forte apelo à humanidade para encetar todos os esforços na busca do equilíbrio social no planeta. Esse episódio foi relembrado por Juscelino Kubitschek no referido pronunciamento de 1944, em cujo texto ele destacou a importância da atuação de instituições com o perfil da União Operária, em seu constante esforço para conseguir oferecer uma vida mais digna às populações desfavorecidas. Foram estas as palavras do prefeito de Belo Horizonte:

“Como tem sempre descido do alto das torres de Deus, pela voz sonora dos carrilhões católicos, a palavra de conforto e a imposição para que todos se julgassem iguais através de milênios, pelos púlpitos e pelas naves, pelas estradas e pelos templos, nunca se calou a voz dos herdeiros de Cristo. E se em alguns documentos humanos do valor da Rerum Novarum de Leão XIII, o problema era revelado nas claras luzes de uma solução, silenciosamente pelas cidades, aldeias, arraiais e povoados, onde quer que se ostentasse uma pequena ermida, havia sempre uma voz clamando pela agremiação dos homens, em sentimentos e instituições que lhes garantissem um equilíbrio social e ao mesmo tempo lhes lembrasse que afinal de contas, todos somos iguais e que a diferença social é apenas uma burla de que se servem os poderosos para, oprimindo os humildes, garantirem para si uma situação de domínio”.

Juscelino Kubitschek iniciou sua vida política em 1934, ano em que se tentou a redemocratização do Brasil, por intermédio da promulgação de uma constituição federativa. Eleito deputado federal, Juscelino Kubitschek voltou os seus olhos para sua terra natal e se esforçou para retirar Diamantina da letargia centenária em que se encontrava naquele momento, asfixiada pelo legado político deixado pelo senador Olímpio Mourão. Nada melhor do que a descrição do próprio Juscelino Kubitschek como comprovação fidedigna do estado deplorável em que se encontrava a cidade:

“Desde a morte do meu avô paterno que eu não havia voltado a Diamantina. O que sabia da cidade era-me contado por amigos que iam a Belo Horizonte. E essas informações eram alarmantes e inquietadoras. Ruas esburacadas. Falta de escolas e ginásios. Estradas que não passavam de trilhas, abertas pelos cascos das mulas. Casas em ruínas. Enfim, pobreza e desolação por toda parte. Lembro-me de uma expressão do meu primo João Kubitschek, após uma visita de alguns dias ao velho burgo, que muito me preocupou: Diamantina está apodrecendo Juscelino. A advertência fez com que redobrasse meus esforços, no sentido de tentar salvar a cidade”.

Por mais que suas intervenções tenham surtido efeito, conseguindo avanços significativos que retiraram Diamantina daquele estado de debilidade agonizante, a história registraria que Juscelino Kubitschek não conseguiria evitar que se perpetuasse para o século seguinte a tradição de uma prática política abominável, definida por ele mesmo naquela época como um “processo clássico de nomeações estratégicas, reforçadas pela pressão policial”. Alguma mudança identificada nessa conduta aconteceu apenas na forma, porém, jamais no seu conteúdo.

Ao se impor como líder político em Diamantina, a partir da eleição municipal de 1936, Juscelino Kubitschek sepultou o antigo Partido Republicano Mineiro na cidade. Contudo, o tempo registraria que o sepultamento seria apenas de uma sigla partidária, não do perfil dos políticos, nem de suas idéias e de seus ideais secularmente sedimentados em Diamantina, nem da falta de projetos voltados para a eqüidade social e o bem comum. A dualidade política da classe dominadora passaria a ser agora moldada pelos interesses próprios dos “correligionários de JK”, versus interesses próprios dos “adversários de JK”, configuração que permanece até os dias atuais.

Durante todo esse tempo, não obstante tenha seguido os avanços sociais ocorridos no Brasil, por intermédio de ações voltadas para a melhoria do ensino, da legalidade geral, e da saúde pública, como, por exemplo, as obras que melhoraram as condições do saneamento básico, o sistema político em Diamantina não se distinguiu muito do modelo tradicionalmente exercido desde os tempos coloniais, sem planejamento algum para atacar de frente as profundas mazelas inerentes a um quadro social degradante.

O período da chamada República Nova começou em 1934. Passados 20 anos de sua implantação e da primeira eleição de Juscelino Kubitschek para deputado federal, assumiu a Arquidiocese de Diamantina, Dom José Newton de Almeida Baptista, no dia 06 de junho de 1954. O quadro social degradante continuava o mesmo no município. Naquele momento, o mundo ainda vivia a crise do pós-guerra, passava por um tempo de angústias, de incertezas e apreensões, sacudido por extremismos violentos. Dom José Newton escolheu como intenção programática para sua administração a mensagem evangélica Por um Mundo Melhor, que norteou as considerações de sua Carta Pastoral de Saudação à Igreja de Diamantina, datada de 18 de abril de 1954. Mirou-se no chamamento do Papa Pio XII, que clamava “por um mundo melhor”, dirigido, em 02 de outubro de 1952, a cento e cinqüenta mil homens da Ação Católica de toda a Itália, incorporados na imensa praça de São Pedro. Dentre as ações que realizou no sentido de cumprir as intenções programáticas de sua Carta Pastoral, Dom José Newton empreendeu duas Semanas Ruralistas na Arquidiocese de Diamantina, levando aos homens do campo de toda sua jurisdição, um pouco da prática benéfica da Ação Social Católica. Na carta de apresentação da I Semana Ruralista, realizada no ano de 1955, Dom José Newton foi firme em destacar sua preocupação com os bolsões de pobreza extrema espalhados pelas áreas periféricas do município. Observe-se parte do apelo veemente registrado por Sua Excelência Reverendíssima naquele documento:

“Deve-se reconhecer, na verdade, que este empreendimento surge de encontro a problemas básicos de nossa gente, que devido a fatores históricos administrativos, jaz em situação social das mais graves e preocupantes. [...] É a pobreza e a doença em meio da abundância e dos encantos do jardim inigualável que Deus nos deu!

Diante deste contraste, a Semana Ruralista de Diamantina quer ser um grito de esperança e de otimismo e um brado de alarma e de apelo às Autoridades responsáveis. Quer, sobretudo, erguer a bandeira da Ação Social Católica desfraldada pelos soberanos pontífices, principalmente pelo grande Pio XII, que não cessa de clamar Por um Mundo Melhor espiritual e materialmente”.

Passados 83 anos da implantação da República Nova no Brasil e 58 anos daquele apelo veemente feito por Dom José Newton em sua carta de apresentação da I Semana Ruralista ao povo da Arquidiocese de Diamantina, guardadas as devidas proporções, quase nada mudou. Na terra que abasteceu a Europa com quilos e mais quilos de diamantes, proporcionando à Inglaterra a condição econômica necessária para deflagrar a Revolução Industrial, episódio que mudou os destinos da humanidade no século XVIII, em pleno século XXI, como conseqüência direta de um sistema político tradicionalmente perverso, ainda grassam em Diamantina a doença, a fome, o preconceito, a perseguição, a injustiça, o abandono do ser humano, em proporções incomensuráveis.

A Igreja Católica continua firme em sua proposição de indicar a Ação Social Católica como a única senda a ser percorrida, pela sua possibilidade legítima de proporcionar a justiça social de forma digna. É exatamente nessa direção que foi publicada a Mensagem de Dom João Bosco Óliver de Faria, atual arcebispo da Arquidiocese de Diamantina, distribuída ao povo em 1º de janeiro deste ano, por intermédio da qual, Sua Excelência Reverendíssima solicita aos governantes um especial carinho com os mais pobres e menos favorecidos. Nessa mensagem Dom João Bosco enfatiza:

“Embora tenha vivido apenas poucos anos nesta Arquidiocese, tive a tristeza de ver muitas manchas de pobreza extrema, de carência total dos meios necessários para uma vida digna de filhos de Deus.

Nossos irmãos mais pobres são filhos de Deus e não podem ser responsabilizados pela triste situação a que foram lançados pelas circunstâncias da vida. Sua pobreza extrema é um grito que brada do Céu, é uma acusação pesada diante de Deus para quem fechar seus olhos fazendo a política da avestruz, que enfia sua cabeça na areia do deserto, para não ver o perigo que se aproxima.

Tentar resolver esse drama de injustiça não é populismo. Populismo é prometer o impossível em campanhas políticas e depois fazer ouvido de mercador aos justos reclamos do povo”.

Como se vê, as aberrações que manchavam o cotidiano do Arraial do Tijuco no século XVIII ainda estão presentes e vivas em Diamantina, em pleno século XXI. Várias delas, com insensatez e violência cortantes, visto que, sendo agora estrategicamente veladas, diante de sua aparente inexistência, deixam cicatrizes invisíveis aos olhos, mas profundas na alma.

Que da altura dos seus 122 anos de existência, a União Operária Beneficente de Diamantina continue sendo uma sociedade de suporte para o operariado, em sua busca incessante de justiça social, por meio de projetos que propugnem o bem coletivo. Que das experiências valorizadas que se emanaram do suor espalhado a partir do recinto deste salão, se apresentem as soluções equânimes que norteiem as atitudes do operariado, pelos anos vindouros deste século que se inicia. E que, nesta Casa, o alento para a perseverança, nas horas de maiores dificuldades, continue sendo a opção pela prática da doutrina social cristã, numa caminhada pacífica, em cuja vanguarda, tremule, altaneiro, um estandarte assinalado pelos preceitos: “Deus, Honra e Trabalho”.

Diamantina – MG, 09 de junho de 2013.

Wander Conceição.

Um comentário:

  1. ...mais uma vez, parabéns Wander pelas informações muito bem estruturadas e claras.

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