Roteirista planeja desvendar a imagem de Chica da Silva
Pesquisadora paranaense que vive nos Estados Unidos já tem autorização para exumar o corpo da escrava. Há, porém, quem discorde. Professora da UFMG acha o projeto "uma bobagem"
Quem realmente foi Chica da Silva, a escrava que teve um relacionamento amoroso de anos com um dos homens mais ricos do século 18, o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira? Uma sedutora, uma rainha, uma bruxa ou uma heroína? E como ela era? Bonita, alta, magra, baixa? Para tentar responder a essas e a outras questões, a roteirista paranaense Rosi Young, que vive atualmente nos Estados Unidos, desenvolve o que classifica como um “documentário científico” chamado 'A rainha das Américas: a verdadeira história de Chica da Silva'.
O projeto prevê até a exumação dos corpos da escrava e do contratador, com a participação de uma equipe de cientistas plurinacional – o antropólogo forense norte-americano Anthony Falsetti; sua mulher, a artista forense brasileira Catyana Falsetti, que ficará a cargo da reconstrução facial e crânio-facial, e a antropóloga molecular neozelandesa Ann Horsburgh.
Liderada por Rosi Young, a equipe deve ir a Diamantina em novembro próximo para o início dos trabalhos. O principal objetivo é determinar altura e peso do casal e outros dados que permitam reconstruir holograficamente suas formas. No entendimento de Rosi, como os descendentes se “perderam no tempo” e Chica e João morreram há mais de 70 anos, são personagens cuja história é de domínio público.
No entanto, para fazer a exumação do corpo de Chica foi necessário obter autorização da Prefeitura de Diamantina e da Irmandade São Francisco de Assis, já que ela teria sido enterrada na igreja de mesmo nome. No caso do contratador, que nasceu em Mariana e foi criado em Portugal, a escritora diz ter em andamento negociações para ter acesso à sua sepultura, em Lisboa. “Esse trabalho só deve ser concluído em 2017, quando vamos lançar o documentário. A pesquisa vai ser respeitosa. Queremos apenas mostrar quem realmente foi essa mulher, que é um símbolo. Vamos tentar descobrir, se possível, a causa mortis do casal. A ideia é trazer João Fernandes para ser enterrado junto com sua amada”, afirma a escritora.
1 - A exumação de Chica deve ocorrer em fevereiro de 2016 (mês do aniversário de sua morte).
2 - A autora do projeto acredita que o corpo de Chica da Silva foi enterrado junto com os de outras pessoas, incluindo uma irmã e uma filha. Todos deverão ser exumados para tentar identificar a da escrava.
3 - Os ossos masculinos serão separados dos femininos.
4 - A partir daí, será feito exame de DNA mitocondrial. O material contido nas mitocôndrias (usinas de energia das células) é herdado apenas por via materna. Esse exame revela, portanto, a origem materna do indivíduo
5 - Se identificada Chica da Silva, será feito um trabalho para reconstruir sua face, por meio de fotografias do crânio e uma tomografia especializada. O rosto será posteriormente moldado em argila.
A professora conta que, durante sua pesquisa, encontrou um jornal do começo do século 20 em que o jornalista diamantinense Antônio Torres cita que o corpo de Chica foi encontrado muitos anos após seu falecimento, com a pele seca e negra, e atirado como resto de animal. O texto de Torres dizia: “Era como um saco de ossos que, ao menor movimento, chocalhavam sinistramente. O coveiro teve escrúpulos de guardá-lo em um lugar sagrado e atirou-o em grotas afastadas, como restos de animal selvagem. Rolado ao vento, produzia vibrações estranhas, que atemorizavam, semelhando gargalhadas de mofa. Os que passavam, mais corajosos, balbuciavam o insulto costumado: ‘Toma lá, quingongo (divindade ligada à profundeza da terra na religião banta)!’ Os demais passavam apressadamente e benziam-se ao ouvir o chocalhar dos ossos.”
“Nem dá para saber exatamente onde esses restos mortais estão. Se estiverem lá, estão junto com outros corpos. Acho tudo isso uma perda de tempo. O que posso dizer é que projetos como esses sempre encontram bobos para bancá-los e acreditar neles. Mas pesquisas históricas e científicas sérias, documentadas e que levam anos, não ganham tanto crédito. É lamentável”, afirma a pesquisadora.
Rosi Young diz que seu documentário deve contar com a participação das atrizes Ísis Valverde e Letícia Sabatella e terá Zezé Motta na direção. Zezé, que ganhou projeção quando interpretou Chica da Silva no filme de Cacá Diegues ('Xica da Silva', 1976), afirma não estar muito a par da iniciativa de Rosi. Diz apenas que recebeu o convite e que, a princípio, tudo que diz respeito à personagem lhe interessa. “Só estou um pouco preocupada com o subtítulo do projeto, 'A verdadeira história de Chica'. Pode parecer uma contradição na minha trajetória, já que fiz a Xica do Cacá e, agora, vão mostrar outra faceta dela. Até conversei com ele, e o Cacá me recomendou relaxar (risos). Ela é uma personagem tão mágica, tão fascinante que há sempre coisas a descobrir sobre essa figura.”
Passo a passo
“BOBAGEM” Apesar de Rosi dizer que a repercussão de sua ideia tem sido extremamente positiva, há quem torça o nariz para a empreitada. Considerada a maior especialista em Chica da Silva, a historiadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Júnia Furtado acha “uma grande bobagem” exumar o corpo da escrava. No livro 'Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito', escrito a partir de uma minuciosa pesquisa em documentos históricos, Júnia afirma que não há certeza de que o corpo de Chica esteja enterrado na Igreja de São Francisco (Diamantina), já que, àquela época, os enterros costumavam ser coletivos, com diversos corpos sendo alocados numa mesma cova.
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