“Os sonhos não não envelhecem”, escrito por Márcio Borges, é um livro delicioso. Retrata de forma leve e verdadeira o surgimento de um movimento musical que marcou definitivamente a história da música brasileira: o Clube da Esquuina. O livro é um relato emocionado e sincero do surgimento de grande músicas, músicos e melodias, com destaque especial para o talento de Bituca, mais conhecido como Milton Nascimento.
Márcio Borges é peça fundamental nessa história. Poeta com olhar cinematográfico, foi o primeiro e um dos mais importantes parceiros de Milton. Assumindo abertamente a ausência do rigor cronológico dos fatos, o autor nos brinda com um texto riquíssimo de histórias e personagens.
“Os sonhos não envelhecem” é um livro essencial para o amante da boa música brasileira, um texto que é uma viagem pelo movimento cultural brasileiro dos anos 60 a 80, tendo como pano de fundo o período de repressão.
Leia abaixo alguns trechos do livro que citam Diamantina
"Beco do Mota" e "Sentinela" foram dois temas escritos por Fernando sobre melodias de Bituca, inspirados em Diamantina, terra dos Brant. Beco do Mota era a estreita viela que abrigara os antigos puteiros. Estes, por estarem bem em frente à igreja matriz, haviam sido desocupados à força por ordem de um arcebispo ultra-reacionário. Sentinela era um lugar cinematográfico e misterioso, nos arredores, com formações geológicas estranhas e imponentes, abertas sobre um vale muito largo. Subindo pelos contrafortes escarpados chegava-se a grutas por onde corriam cristalinas águas subterrâneas, com piscinas naturais cercadas de pedras com inscrições rupestres, o que sinalizava a presença muitas vezes milenar do ser humano naquela região. Do alto dessas pedras enormes via-se o grande platô coberto de vegetação do cerrado a estender-se até quase a linha do horizonte, até onde outras elevações semelhantes àquelas se erguiam quilômetros além. Uma paisagem de grandeza impressionante, cujas proporções tornavam igualmente insignificantes tanto os homens em cima da pedra quanto o lobo que vagava lá embaixo, à procura de comida. Os homens em cima da pedra eram Bituca, eu, Fernando, Lô e Juvenal. No entardecer róseo que prenunciava frio, Bituca puxou uma música ao violão. De um brejo próximo, um sapo respondeu no tom. Nós nos entreolhamos. Na mudança de acorde, outro sapo coaxou também no tom, mas ajuntando uma terça maior. Bituca fez evoluir o acorde e a saparia (ou sapaiada) atacou de quintas, sétimas, nonas, harmônicos, em vocalização completa, veementemente interpretada. Foi um dos mais comoventes acompanhamentos musicais que Bituca teve oportunidade de receber em toda a sua carreira de músico e compositor.
Antes das gravações do álbum duplo, voltamos a Diamantina. A revista O Cruzeiro
queria realizar uma reportagem conosco e lá estávamos, sempre acompanhados pelo carro
de reportagem da revista. Formávamos um bando barulhento que só se deslocava
coletivamente: eu, Bituca, Fernando, Lô, o fotógrafo Juvenal Pereira e um estudante de
direito amigo de Fernando, Ildebrando Pontes. Fomos hospedados num hotel colonial,
muito bonito e bem-arrumado. Meu quarto ficava numa ala do velho casarão que dava para
a praça principal, enquanto o de Fernando tinha janelas que se abriam para uma igreja e o
cemitério da cidade. Com toda a certeza isso foi a inspiração que teve para nos mostrar,
certa manhã, à mesa onde fazíamos o desjejum, a letra que havia escrito ali, durante a noite,
sobre um tema que Lô lhe passara:
PAISAGEM DA JANELA
Da janela lateral do quarto de dormir vejo uma igreja, um sinal de glória vejo um
muro branco e um vôo pássaro vejo uma grade, um velho sinal Mensageiro natural de
coisas naturais quando eu falava dessas cores mórbidas quando eu falava desses homens
sórdidos quando eu falava desse temporal você não escutou você não quer acreditar mas
isso é tão normal você não quer acreditar e eu apenas era Cavaleiro marginal lavado em
ribeirão cavaleiro negro que viveu mistérios cavaleiro e senhor de casa e árvores sem
querer descanso nem dominical Cavaleiro marginal banhado em ribeirão conheci as torres e
os cemitérios conheci os homens e os seus velórios quando olhava da janela lateral do
quarto de dormir você não quer acreditar mas isso é tão normal você não quer acreditar
mas isso é tão normal um cavaleiro marginal banhado em ribeirão.
Terminado o café da manhã, saímos a andar a pé pela cidade. Numa pracinha,
avistamos uma Kombi com o logotipo da revista Manchete. Nós, com O Cruzeiro. Por
curiosidade nos aproximamos para identificar quem era aquela personalidade que estava
sendo fotografada pela outra equipe. Chegamos perto. Elegantemente sentado num banco
da pracinha, de terno escuro, sapatos de cromo reluzente, sorriso de modelo profissional,
gestos estudados de quem estava acostumado a tais sessões de fotos, lá estava o expresidente
Juscelino Kubitschek. Ildebrando não se conteve. Aproximou-se correndo e
tascou um abraço apertado no lendário chefe de Estado:
— Ô Nonô! Que prazer, Nonô, dê cá um abraço, meu velho.
O presidente, afável, ficou de pé para ver que bando era aquele que chegava em
alvoroço. Insuflado pelo abraço desabusado que Ildebrando lhe dera, fiz o mesmo, só que
sem o desplante de chamá-lo pelo apelido familiar. Pelo contrário, lembrei-lhe meus dez
anos de idade, quando JK era governador de Minas, e fui o mais reverente que pude:
— Presidente, que honra abraçar o senhor. O senhor foi meu paraninfo quando
completei o primário no Instituto de Educação.
— Eu me lembro muito bem, meu filho. — O Presidente sorria e correspondia a
meu abraço, acostumado a essas manifestações de carinho do povo brasileiro.
Após rápida negociação entre as duas equipes de reportagem, as apresentações
formais foram feitas e ali mesmo improvisamos uma rodada de seresta.
Fernando propôs:
— Canta "Beco do Mota".
Nós todos rimos e o presidente, como bom diamantinense e portanto sabedor de
que se tratava do beco dos puteiros, riu também.
Bituca começou:
Clareira na noite, na noite Profissão deserta deserta Nas portas da
arquidiocese Deste meu país...
E desfiou tudo, até o final:
Diamantina é o Beco do Mota Minas é o Beco do Mota Brasil é o Beco do
Mota Viva meu país.'!!
O presidente deu um sorriso formal:
— Vocês são de morte!...
Tanto a Manchete quanto O Cruzeiro registraram esse momento em fotos — e
algumas delas, muitos anos depois, foram terminar expostas por detrás de vitrines, no
memorial erguido em honra a JK, em Brasília.
No entanto, a reportagem sobre nós saiu um tanto ridícula e exagerada, nos
chamando de "Beatles brasileiros".
Se não me engana a memória, o João Francisco Meira me contou na época que ele estivera presente na passagem da saparia com o Bituca na Sentinela. Numa oportunidade, confiro com o Chico Meira. Abraço.
ResponderExcluirEu e o João Francisco tivemos a oprtunidade de presenciar esta maravilha de som.Encontramos a turma no bar de Jaime Gordo(Bar Serenata),compramos uns litros de batida e alguns pasteis e fomos pra Sentinela,ficamos lá até anoitecer.Este concerto aconteceu no fim de tarde com um por do sol lindo.Foi maravilhoso,inesquecível......
ResponderExcluirPois taí o Johnny que não me deixa mentir (e prova que minha memória nem tá muito ruim...)Abraços.
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