Autor: Carlos Herculano Lopes, Estado de Minas 07/05/2010
Filho de antigas famílias de Diamantina e região que mudaram para o Vale do Rio Doce na segunda metade do século 19, quando se deu a exaustão quase total das minas de ouro e diamante, para ali se estabelecerem como pequenos fazendeiros e comerciantes, cresci ouvindo falar em O livro da capa verde. Volume que muito provavelmente, enquanto ditava as normas no velho Tejuco, atormentava a vida de alguns desses meus antepassados, como a de tantos outros habitantes locais. A primeira menção que vi a ele, se não me engano, foi feita por uma irmã do meu pai, Maria das Dores Lopes, a tia Dozinha, que no fim dos anos de 1930 e início dos 1940 estudou em Diamantina, no lendário Colégio Nossa Senhora das Dores, onde concluiu o curso normal, feito notável para aquela época. Sempre se falava nele em voz baixa, na intimidade da casa.
Na minha condição de criança, que, às vezes, desrespeitando as regras, ouvia conversa de adultos, acabei chegando à conclusão de que o tal livro, definitivamente, não devia ser coisa boa. “Ele era terrível, meu filho, e ai de quem, por falta de sorte, tivesse o seu nome nele”, essa foi a resposta que ouvi da minha tia, quando uma vez, enchendo-me de coragem, ousei tocar nesse assunto com ela. Em outra ocasião, meio sem querer, escutei quando dona Leopoldina, que morava perto da nossa casa, disse irada, com as mãos trêmulas, ao se referir a uma determinada pessoa: “Aquele sujeitinho, para sempre, está na primeira página do meu O livro da capa verde”. Também a família dela, como a nossa, tinha vindo de Diamantina.
“Coitado, esse está acabado”, pensei, pois a fama daquela mulher não era das melhores, e dei um jeito de ir caindo fora, para que também, por ter ouvido a conversa, não entrasse na lista. Algum tempo depois, no início da adolescência, vim morar em Belo Horizonte, comecei a tomar meus rumos na vida e só voltei a ouvir falar de O livro da capa verde anos mais tarde, já formado em jornalismo, ao ler o clássico Memórias do Distrito Diamantino, de Joaquim Felício dos Santos. Mas,como minhas prioridades na época eram outras, acabei não dando muito importância ao tema, pelo qual só voltei a me interessar recentemente, ao me deparar, depois da indicação de uma amiga, não com o próprio, mas com um estudo sobre ele: O livro da capa verde – O regimento diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da real extração (Editora AnnaBlume), de autoria da professora de história na UFMG, Júnia Ferreira Furtado.
O que então vinha a ser aquele livro tão famoso, que tanto aterrorizava a sociedade diamantinense do fim do século 18 e início do 19, a tal ponto de, já nos anos de 1960, as pessoas da minha terra se referirem a ele com um certo temor, como se ainda existisse? De acordo com a professora Júnia, em 1771, a coroa portuguesa resolveu, por conta e risco, assumir a extração e comercialização do ouro e do diamante, alegando que não conseguia impedir as fraudes dos contratadores, controlar a população e, com isso, impedir a garimpagem ilegal e o contrabando. Os prejuízos, para a Corte, estavam sendo muitos.
Criou-se então, por meio de um regimento, editado naquele mesmo ano, a “Real Extração do Diamante”, por edital que ficou conhecido, na boca do povo, como O livro da capa verde. Tudo, desde a vida das pessoas até suas transações ilícitas ou não, como a exploração e comércio das pedras, venda ou aluguel de escravos, deveria constar nele, onde se fazia valer a mão de ferro do governo.
Segundo a professora, o nome derivou do fato de que o único exemplar enviado pela coroa portuguesa ao Tejuco era encadernado em cor marroquim verde e ficava exposto na entrada do prédio da Intendência. Era permitido às pessoas consultá-lo; mas não fazer anotações. No entanto, algumas cópias foram feitas.
Apesar de toda a rigidez e tentativas de controle, o contrabando de diamantes e outras coisas ilegais continuarem a ocorrer, ainda segundo a professor Júnia, muitas vezes com a conivência das próprias autoridades. Essas, quase sempre, eram as mais interessadas, por proveito próprio, em fazer ouvidos moucos e vedar os olhos em relação ao que, por baixo dos panos, ocorria na Real Extração. Não é segredo que intendentes e contratadores, a exemplo de João Fernandes de Oliveira, ficaram riquíssimos.
Para que, então, serviu O livro da capa verde? Se algum dia tiver o prazer de conhecer a professor Júnia, que é autora ainda de uma ótima biografia de Chica da Silva, quero perguntar a ela. Sem querer ser leviano, nem chegar a conclusões precipitadas, arrisco-me a dizer que aquele malfadado livro, pelo medo que impunha às pessoas, deve ter ajudado – e muito – a aprofundar ainda mais o silêncio e a desconfiança que, desde aqueles tempos, vez por outra invadem os nossos corações de mineiros.
P.S.: Esta crônica é para Júnia Ferreira Furtado, em Belo Horizonte, e João Francisco Mota, em Diamantina.
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