Anatomia de um povo desprezado
Autor: Helion Póvoa Neto, Professor da UFRJ e Coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM)
Os ciganos por vezes aparecem como povo “à parte”, não pertencente a nações territoriais, com vida nômade ou seminômade, provocando estranheza numa sociedade com valores associados à sedentarização, como a Europa.
Junto disso, é bom lembrar que, na sociedade moderna, pessoas partem em busca de novos lugares para viver e se estabilizar, por causas econômicas, políticas e religiosas. São as migrações.
Ao mesmo tempo, há movimentos associados à “errância”, ao nomadismo ou à incapacidade de estabelecer relações duradouras com os lugares e as formas de trabalho mais tradicionais, que são fortemente estigmatizados, levando a iniciativas de assimilação ou sedentarização forçada. Os povos ciganos já foram alvo de tais processos, embora muitos mantenham seu estilo de vida característico. Costumam atuar em ofícios ligados à arte e às atividades mágicas, com uma existência tida como “aventureira”, suscitando atitudes ambíguas da parte dos que vivem em sociedades não nômades.
Tem sido este o tom do relacionamento das sociedades ocidentais com os ciganos ao longo da história, desde que apareceram no continente europeu, causando, ao mesmo tempo, curiosidade e medo. Não havia registros escritos sobre sua origem e história. Paralelamente, praticavam uma cultura de transmissão oral, em uma língua incompreensível e cheia de segredos para os ocidentais.
O nome com que passaram a ser conhecidos já revela esse aspecto. Identificando-se como refugiados do Egito muçulmano, favoreciam a associação entre “egípcios” (égiptiens, egyptians, egitanos) e os nomes gitans, tsiganes em francês, gypsies em inglês, gitanos em espanhol, ou ciganos em português. Muitos ciganos consideram tais nomes pejorativos e, mesmo sem consenso, preferem a designação de povos romani, rom ou roma.
A chegada à Europa
Sendo o continente europeu fundamentalmente cristão, especulações sobre a origem dos ciganos apoiaram-se em escritos bíblicos. Já foram qualificados como amaldiçoados, condenados a vagar pelo mundo por descenderem de Caim, por terem negado abrigo a José e Maria na volta do Egito ou por haverem forjado os pregos usados para a crucificação de Jesus Cristo.
Vale notar a semelhança com lendas referentes a outro grupo, os judeus, também associados à errância, a uma “culpa original” e ao exercício de ofícios diferentes daqueles dos cristãos. Séculos mais tarde, tidos como “sem pátria”, os dois grupos seriam vítimas do Holocausto na Alemanha nazista.
As conclusões já aceitas sobre os ciganos baseiam-se em registros escritos e nas línguas e dialetos romani, que foram assimilando características das regiões pelas quais passavam.
A explicação mais aceita aponta para a península indiana como área de origem, com a saída ocorrendo na Antiguidade. Textos e imagens de época registram a chegada e passagem de músicos e outros trabalhadores indianos à Pérsia (atual Irã) entre os séculos III e V de nossa era. Outros registros históricos documentam um movimento progressivo, rumo ao Ocidente, de grupos nômades com origem indiana.
No século XIV, a presença dos ciganos começou a se fazer notar na maior parte da Península Balcânica, onde hoje estão Croá-cia, Sérvia, Bulgária e Romênia. Nessas regiões registram-se também os primeiros sinais de escravização de ciganos, um fenômeno que ocorreria até o século XIX em boa parte do Leste Europeu.
Estigma e Violência
As guerras e as crises agrárias na Europa, entre o fim da Idade Média, haviam deixado senhores de terras sem trabalhadores, o que acarretou uma legislação contra a vagabundagem e a errância, visando compelir as pessoas ao trabalho. Os ciganos, com pele mais escura, sem vínculos a nenhuma nação reconhecida e parecendo “naturalmente” nômades, foram as maiores vítimas. Eram alvos também para a Igreja Católica, preocupada com formas de magia (a leitura de mãos e a previsão do futuro).
Assim, ao mesmo tempo que os ciganos chegavam à Europa Ocidental, por volta do século XV, as atitudes discriminatórias se acentuavam. Mesmo onde não havia escravidão, ser reconhecido como cigano ou judeu equivalia a ser criminoso e ao trabalho nas galés (prisões). Nobres, reis e papas buscavam submeter os nômades vistos como irredutíveis ou indesejáveis. O papa Pio V incitou os governos de Portugal, Espanha e França a expulsar ciganos das áreas católicas para África e América. Em alguns casos, os próprios ciganos tomaram a iniciativa de emigrar para o Novo Mundo, seguindo os judeus que se cristianizavam e fugiam das perseguições na Europa.
No século XVIII, permaneceram tentativas de sedentarização forçada e erradicação das línguas romani. Muitos, porém, permaneceram nômades: viviam de transporte e a venda de animais, comércio em mercados temporários, trabalho como músicos e artistas de circo, leitura de mãos e adivinhação da sorte nas cidades.
Em alguns países, tiveram uma relativa estabilidade e integração às sociedades locais, como na Espanha, onde a cultura flamenca é praticada por ciganos e reconhecida como um símbolo de identidade nacional.
No Leste Europeu, onde ciganos representam porcentagem significativa da população em países como a Romênia e a Bulgária, permanece predominantemente o grupo rom, ou roma, que pratica a língua romani e apresenta diversos subgrupos.
A partir do século XIX, as atitudes quanto aos ciganos estabilizaram-se, na Europa, persistindo a discriminação, mas com um crescente interesse em sua linguagem, música e cultura. As leis anticiganos tendiam a ser abolidas, juntamente com a servidão e a escravidão no Leste. O espírito romântico nas artes voltou-se muitas vezes para os ciganos.
Da sedentarização ao extermínio
A relação entre ciganos e povos europeus voltou a ser violenta com o governo nazista da Alemanha. Manifestações de intolerância surgiram na década de 1920, quando leis pronunciavam ciganos e judeus como “raças estrangeiras” de sangue “impuro” e ameaçadoras ao projeto de pureza racial alemã.
Classificados como criminosos, alheios à “sociedade normal”, foram deportados à Polônia, aprisionados em campos de concentração e submetidos, de 1943 a 1945, à chamada “solução final”, com o extermínio de 200 mil a 800 mil ciganos.
No pós-Segunda Guerra Mundial, os ciganos do Leste Europeu, habitantes dos países do bloco socialista, estiveram sujeitos a projetos de assimilação e sedentarização- forçada. O nomadismo sofreu interdições, e a escolarização tornou-se obrigatória, com negação do estatuto de minoria étnica e linguística. A sedentarização foi atingida, mas em geral a assimilação fracassou: ressentimentos e preconceitos entre ciganos e não ciganos existem até hoje.
A abertura da União Europeia
Durante a Guerra Fria, ciganos do Leste Europeu eram proibidos de viajar. Porém, na década de 1960, ocorreu uma vinda de ciganos, principalmente da antiga Iugoslávia, para países ocidentais.
A grande mudança nos fluxos aconteceu a partir de 1989, com a queda dos regimes socialistas e a migração, em massa, de grupos acalentados pelo sonho do “Ocidente próspero” e receptivo à imigração. Juntando-se a outros não ciganos do Leste, milhares de roma deslocaram-se legal ou ilegalmente.
A partir de 2004, ingressaram na União Europeia países com considerável população cigana, como Hungria, Eslováquia, República Tcheca. Em 2007, aderiram também Bulgária e Romênia.
O problema dos ciganos confunde-se com a rejeição aos imigrantes em geral, e também com o tema político, extremamente sensível, o da expansão da UE rumo ao Leste. Outros países com consideráveis contingentes de ciganos são também candidatos ao ingresso, como Sérvia e Turquia.
A União Europeia foi pensada como um espaço comum de circulação, com eliminação do controle de fronteiras para os países participantes. Todavia, os habitantes dos últimos países a entrarem na UE não são ainda membros plenos, o que têm repercussões para a situação dos imigrantes do Leste nos países europeus ocidentais.
As iniciativas recentes de deportação de ciganos romenos e búlgaros pela França, com ameaças em outros países, podem ser entendidas nesse contexto. A situação de “sem domicílio fixo” de boa parte dos ciganos e a alegação de constituírem risco para a ordem pública também aparecem como justificativas. A criminalidade é frequentemente alegada como razão para o estigma da comunidade. Porém, a situação de rejeição parece ser também uma causa para a restrição das opções de trabalho e sobrevivência para os ciganos.
A história mostra que responsabilizar todo um povo, cultura ou etnia, por problemas sociais mais amplos, pode ter consequências graves. Notícias recentes quanto a um “cadastro étnico” que a polícia francesa teria elaborado para os ciganos evocam perigosamente iniciativas semelhantes já mencionadas, e causam temores quanto ao que podem prenunciar.
A situação dos ciganos alerta a todos nós para os riscos da busca dos “culpados mais fáceis”, numa Europa que valoriza a diversidade cultural e tem como um de seus princípios a livre circulação.
Os Ciganos no Brasil
No século XVI, os primeiros ciganos desembarcaram na Colônia, provavelmente ibéricos degredados. Há registros também da presença de ciganos na região das Minas Gerais no século XVIII, em geral acusados de “desordeiros”. No Rio de Janeiro, alguns ciganos enriqueceram com o comércio de escravos.
No século XIX, outros grupos começam a chegar, em meio à política de abertura à imigração europeia. Tidos como indesejáveis pelos oficiais de imigração na maioria dos países, ocultavam sua condição tanto às autoridades dos locais de partida quanto às dos países de chegada. Assim, mesmo sem identificação precisa, nos séculos XIX e XX, o Brasil recebeu ciganos em meio aos fluxos de imigração alemã, italiana e do Leste Europeu.
Essa falta de identificação no processo migratório explica a imprecisão das estimativas atuais quanto ao número de ciganos e descendentes em território brasileiro. Com exceção de alguns grupos no interior do País, atuando como artistas de circo, comerciantes e ferreiros, a comunidade cigana é bem pouco visível na sociedade brasileira.
A recente valorização da identidade cigana, em novelas de tevê, em grupos de música e dança, estimulou alguns a se assumirem ou redescobrir suas “raízes ciganas”, embora o preconceito e as associações negativas ainda persistam. Um exemplo de origem cigana pouco conhecida é o de Juscelino Kubitschek de Oliveira, presidente da República (1956-1961), neto de um imigrante do império austro-húngaro que chegou a Diamantina (MG) em meados do século XIX.
Fernando, muito interessante o artigo. Sobre o preconceito, que, menino, testemunhei aí, e da provável origem de JK, fizéramos no Micuim(http://www.micuim.org/?p=10450) modesta referência, em texto depois publicado no "Voz de Diamantina". E pensar que na Europa atual, hein?! Abraço.
ResponderExcluirSaul,
ResponderExcluirEssa origem cigana eu desconhecia. Li a biografia do JK e nada foi mencionado. Diamantina é assim: cavucou, achou. Eita lugar cheio de histórias...
Saul,
ResponderExcluirEssa origem cigana eu desconhecia. Li a biografia do JK e nada foi mencionado. Diamantina é assim: cavucou, achou. Eita lugar cheio de histórias...
Hehehe: atrás de morro tem morro.
ResponderExcluirAbço.