Fonte: Laura Capriglione, na Folha de São Paulo
O hóspede da casa de baixo era louco? "Por que insistia em tocar violão de madrugada, aquele plim-plim-plim sem fim, uma nota só, que nem uma araponga?"
Furiosa, a professora Eni Assumpção Baracho, do conservatório musical de Diamantina (294 km ao norte de Belo Horizonte, Minas), crivava de perguntas o sobrinho Antônio de Jesus Neves, então com 27 anos, que se encantara com o recém-chegado João Gilberto, ainda um desconhecido, aos 25 anos.
"Eu tentei explicar para ela que João estava treinando. Que ele era um exímio violonista", lembra Antônio, hoje 82 anos. A professora desacreditou.
Anos depois, João Gilberto estourou com o disco "Chega de Saudade" (1959).
"Quando passei na papelaria, vi a capa da [revista] "Manchete". Ou seria "Cruzeiro'? Era ele. Comprei a revista e fui mostrar para a tia."
"Quem é esse cabra?", desafiei. "Uai, tá parecendo aquele amigo de vocês."
"É o próprio que você falou que não sabia tocar violão!"
Não podiam ser mais distintos os mundos da professora que morava em cima, e o de João Gilberto, que morava em baixo do mesmo sobradão. A separá-los, só a madeira do chão, como é típico em edifícios coloniais -isolamento acústico, nenhum.
A professora tinha por música os vozeirões de Orlando Silva, Carlos Galhardo e Silvio Caldas, além das modinhas e serestas mineiras.
Ao térreo do sobrado, porém, tinha chegado uma gente moderna. Dadainha, irmã de João Gilberto, mudara-se para a cidade quando o marido, o engenheiro Péricles Rocha de Sá, foi encarregado de construir estradas, ligando a cidade ao restante do país.
Fazia parte dos planos de governo de Juscelino Kubitschek (1902-76), natural de Diamantina, depois alcunhado -veja só- de "presidente bossa nova".
Atrás da irmã foi João Gilberto, justamente no ano em que JK tornou-se presidente (1956). Passou sete meses lá.
"Ele só parecia ter uma preocupação: ficar ótimo na música. Ele não veio aqui para se inspirar. Veio para fazer algo que já estava na cabeça dele", lembra Geraldo Miranda, 77, bancário aposentado, outro amigo mineiro que João Gilberto conquistou.
"Entro um dia no sobrado, e encontro João com um elástico, prendendo o dedo mínimo ao punho da mão direita. Era um exercício. Treinava sem parar -puxando e soltando, puxando e soltando."
O pesquisador Wander Conceição, 50, entrevistou 40 contemporâneos da estada de João Gilberto em Diamantina e prepara um livro sobre o tema. De um amigo que compartilhava discos de jazz com o artista, ouviu: "Ele tinha um ritual de estudos que sempre se iniciava com João beijando uma imagem de Santa Terezinha".
Esse amigo era dos poucos admitidos no "estúdio" do sobrado, quando João se concentrava ao máximo. Na verdade, o estúdio era o banheiro. "A acústica do cubo de 2,30 metros de aresta permitia a João se escutar. Foi fundamental para que ele exercitasse a batida da bossa nova", afirma Conceição.
A disciplina dos estudos e a devoção a Ary Barroso e a João Donato -"Ele era doido por Donato"- não impediram, entretanto, João Gilberto de exercer seus encantos.
"Uma das amigas dele adorava Carlos Drummond de Andrade. João recitava-lhe Drummond e dizia: olha essa dissonância... é isso o que eu quero fazer na música." O relato é de Conceição.
Até serenata, gênero de que JK tanto gostava, João Gilberto praticou em Diamantina. Mas do seu jeito.
Os amigos lembram quando ele decidiu fazer uma. "João, com essa vozinha, você não vai acordar ninguém, não", advertiu Geraldo.
"Ele pediu para segurarem o violão, tomou uma pedrona e jogou-a ladeira abaixo. A moça acordou com o barulho. E ele cantou."
Geraldo e Antônio nunca mais viram João Gilberto. Fausto Miranda, 78, irmão de Geraldo, teve mais sorte. Ajudante de garçom num restaurante de Nova York, o Brazilian Coffee Restaurant, numa noite de 1966, recebeu a incumbência de entregar comida num apartamento.
"Subi, bati a campainha. Quando a porta se entreabriu, era ele." De João, recebeu o LP "The Warm World of João Gilberto" (1963). Com dedicatória. É o único registro da voz e violão do amigo que a turma mantém.
O sobrado, tombado pelo patrimônio histórico, abriga uma imobiliária. O banheiro-estúdio foi dividido ao meio.
Fernando, claro que furtei. Abração.
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