segunda-feira, 13 de junho de 2011

Senhoras Lavadeiras, lavai nossa cidade!

Autora: Anna Angélica R. Soares

Com enorme surpresa e quase cética alegria recebi, a meados do início da semana passada, a boa nova de que se apresentariam em nossa cidade as meninas do Coral das Lavadeiras de Almenara e seu “maestro” Carlos Farias. Também incluídas na programação estavam apresentações teatrais dos grupos Atrás do Pano, Trama, Zap 18 e Cóccix Companhia Teatral.

Minha primeira reação ao ouvir a notícia foi dizer: “Não acredito!”. Tão logo retomada a racionalidade e frieza, quis saber de quem tinha partido a tão louvável iniciativa de incentivo à cultura popular. Numa surpresa reincidente, ouvi a possibilidade de ter sido a Secretaria de Cultura de nossa cidade responsável por tal projeto. Dessa vez, porém, minha incredulidade foi certeira. O projeto é patrocinado pela ArcelorMittal (empresa produtora de aço) através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. O projeto recebe o nome de “Cena Coletiva” e acontece neste ano de 2011 nas cidades de Carbonita, Senador Modestino Gonçalves, Santos Dumont, Nova Lima, Contagem e Belo Horizonte. Obtive estas informações através de um e-mail enviado não pela nossa Secretaria de Cultura, mas por uma entidade sociocultural, daqui de Belo Horizonte.

Peço espaço agora para desculpar-me frente às entidades representativas (culturais e todas as demais) de nossa cidade pela falta de confiança impossível de mascarar, mas é que esta me falta há tempos e após repetidas e exaustivas tentativas de encontrar motivos para confiar e esperar (em vão), penso que os senhores não iriam exigir de mim conduta diferente, não é?

Quero, pois, agora, pontuar alguns dos motivos que me levam a duvidar da capacidade de iniciativa da vossa gestão, na qual vergonhosamente assumo que confiei meu voto, talvez por um rompante de loucura, ou mais provavelmente, por falta de vergonha na cara. Isso sem falar na falta de opção. Eu poderia listar uma série de problemas, negligências e evidências de uma administração pouco qualificada. Nossa cidade só viu período de real prosperidade, com administração diferenciada e iniciativas sólidas no período de 1993 a 1996, que, entretanto, foram dissolvidas pela incompetência e falta de vontade das administrações posteriores. É justamente essa volatilidade de objetivos, que por pura e burra politicagem não consolidam nenhum projeto de transformação efetiva e continuada no município.

Ajustando, porém, o discurso ao nosso atual corpo administrativo, em seis anos de mandato não houve nenhum projeto social efetivado, tampouco sociocultural. Temos que convir que buscar modelo de sistema cultural em outros Estados e querer implantá-lo simplesmente em nossa cidade está longe de ser uma ação no mínimo compatível com a demanda e realidade do município. Ou, ainda, “mapear” as manifestações culturais do município a partir de uma pesquisa superficial e desrespeitosa com os verdadeiros mestres que concentram parte significativa de informações e memórias de nossa história. É fatídica a relação constituída e perpetuada entre a população e as manifestações de cultura popular da região, na qual se configura gritante desconhecimento.

É indispensável considerar a importância das diversas expressões da cultura de um povo como elementos intrínsecos e indissociáveis de sua própria identidade e memória. Sendo assim, pergunto-lhes: qual é a identidade do povo modestinense? Qual é a nossa história? Não estaríamos de fato perpetuando nossa história como sendo a de vítimas de nossas próprias escolhas, condenadas e acomodadas a viver ao bel prazer de nossos governantes?

Neste fim de semana, no dia 22/05, com público de menos de 100 pessoas, em uma população de 4.574 habitantes (IBGE, 2010), houve uma mostra de cultura popular do grupo Coral das Lavadeiras de Almenara, região do baixo Jequitinhonha. As Lavadeiras, segundo “sua sina e sua sorte, cantam o que passaram”, as histórias do nosso Vale do Jequitinhonha, tempos passados e esperanças sempre renovadas. Nossas senhorinhas passaram tempo considerável e bastante cansativo viajando: de Almenara a Carbonita, desta a Mercês e daí de volta a Almenara. Tudo isso entre sábado e domingo. Tanta andança merecia presença, mobilização, ao contrário do que foi visto na pracinha que as recebeu.

O que explica então público tão ínfimo? Falta de interesse do povo? Mas como é possível que o povo se interesse sem que chegue ao seu conhecimento a ação que está sendo articulada? Pelas informações que a mim chegaram, a própria ArcelorMittal ofereceu jornaizinhos impressos com as informações sobre as apresentações que, entretanto, foram devidamente distribuídos sem a necessária exortação da importância da presença. O mínimo que se espera de uma gestão qualificada é que os dispositivos de comunicação funcionem, já que é esta a ferramenta capaz de se aproximar do povo e garantir o direito de informação, o que também qualificaria administração transparente e próxima da população, que deveria ser início, meio e fim de todas as ações do poder público municipal.

O interesse de divulgação foi mínimo, e talvez esteja aí o “X” da questão: aproximar a população local de um elemento constitutivo de sua própria identidade implica gerar consciência e possibilita mudanças. Quando as lavadeiras falam das histórias cantadas à beira do rio, cantam a nossa própria história, de um povo historicamente alijado em seus direitos e estigmatizado como miserável. Até quando vamos ser miseráveis em nossa atuação frente ao desrespeito dos gestores públicos? Desrespeito ao nosso direito de informação e formação, aos recursos destinados ao bem comum e ao desenvolvimento, até quando? Fica claro que não é de interesse administrativo promover o conhecimento, mas mascará-lo, a fim de não gerar consciência e, portanto, manter-se indefinidamente no poder (isso tudo supondo que os próprios governantes tenham esta consciência já de antemão, possibilidade da qual tenho lá fortes dúvidas).

No sentido de construção e afirmação de identidade, através do contato com elementos culturais originários, devemos refletir também sobre a atuação da juventude de nosso município enquanto sujeitos desse processo. Maioria significativa de nossos jovens torna-se cada vez mais apática, alienada e afastada da consciência política, cultural e social, cada vez mais distante de ser sujeito de seu próprio futuro. O que constitui o universo cultural de nossos jovens atualmente? Certamente estes mesmos jovens, que exaltam e vibram com músicas e danças de diversas regiões do Brasil, tais como o funk carioca (sem desconsiderar a importância da diversidade cultural contida nessas tantas manifestações), sequer conhecem o Congado, a Marujada, o Boi de Janeiro, a Festa do Rosário, os Corais, a Folia de Reis, a Festa do Divino, festas populares típicas de nossa própria região.

No que cabe à gestão municipal, é fundamental superar a diferença entre simplesmente reconhecer uma manifestação cultural e, por outro lado, promover e incentivar a cultura popular em sua diversidade. É preciso popularizar uma cultura que, em nossa cidade, nada tem de popular. A cultura é um elemento fundamental da atividade governamental e um fator decisivo de progresso social. É, portanto, necessário contar com gestores culturais qualificados. Mais ainda: é fundamental uma gestão articulada, entre as Secretarias, prefeito e vice. De nada valem boas ideias do Secretário de Cultura, por exemplo, se não houver: 1) Adoção de uma postura clara e consciente deste enquanto gestor; 2) Abertura e boa vontade do prefeito para receber e apoiar iniciativas. Sem esta relação, o neologismo do poeta Paulo Leminski “inutensílio” passa a traduzir a (des)função das Secretarias Municipais.

Reconhecer é relativamente fácil: a gente sabe que a administração em geral está ultrapassada e ineficiente. O problema é sair do campo da crítica por si só (que nada é capaz de transformar) e adotar atitudes mais questionadoras que mobilizem mudanças. Vamos sempre nos abster de opinar, reclamar, provocar acerca daquilo que é nosso por direito? Quem irá nos salvar? Talvez nosso ilustre prefeito, que a começar pelo “grande” interesse, nem sequer compareceu à praça, para junto de seus potenciais eleitores, celebrar a cultura popular.

Este breve artigo, escrito por uma modestinense, que, mesmo ausente, acredita no potencial de transformação de nosso município por meio de seu povo, é destinado aos leitores que se reconhecerem nestas linhas (seja como modestinense insatisfeito, ou não, ou ainda os que administram nosso município), e foi feito também para deixar registrada a importância de ao menos ter sido aceita a parceria neste projeto por parte de nossa Secretaria de Cultura. Que o show das Lavadeiras e Carlos Farias, bem como as apresentações teatrais (que já evidenciam a sede do público presente em conhecer e interagir com as manifestações culturais) sejam apenas um respingo de uma tempestade de mudanças. Todo primeiro passo é importante, afinal ele nos permite formular críticas, planejar e repensar os próximos “caminhares” em uma estrada de pedras.

Deixo sugestões de reflexão acerca de pequeno trecho cantado por meu querido amigo Carlos Farias e que traduz bem o sentimento de insatisfação e o fétido odor que, neste caso, alcança as casas dos que tem narinas abertas: “Tem sujeira da grossa pintando na taba, sai dessa minha cidade, essa carniça te acaba!”. E ainda, como não poderia faltar, o canto das Lavadeiras nos diz: “canoa velha esquecida no cais (...) não navega mais”. Vamos permitir que a canoa continue encostada, esquecida? Ou vamos remar nossa velha embarcação para águas mais límpidas? É tempo de anúncio de ruptura, de mudança inadiável. Revolução de consciência já!

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário