Fonte: Arquivo da Folha de São Paulo (clique aqui), uma dica bacana do Henrique Oswaldo
São Paulo, 1959 – Autor: JÚLIO MEDAGLIA
Revirando arquivos em casa, encontrei uma reportagem da extinta revista carioca "O Cruzeiro" do dia 29/8/59. A reportagem acusava o renomado musicólogo alemão naturalizado uruguaio Francisco Curt Lange de roubar manuscritos de obras do barroco mineiro musical e se negar a entregá-los a uma biblioteca pública brasileira, já que se tratava de patrimônio histórico nacional.
A tese em si estava correta, não fossem os acontecimentos que precederam esse texto malicioso, que ameaçava o cientista musical e descobridor daquele acervo com um mandado de busca e apreensão.
Curt Lange (1903-97) iniciou seus contatos com a América do Sul na década de 1930. Já famoso, foi levado ao Uruguai para criar uma rádio cultural e uma sinfônica. Com o início da Segunda Guerra, resolveu ficar por lá. Casou-se com uma uruguaia, naturalizou-se cidadão daquele país e latinizou seu nome de batismo, que era Franz Kurt Lange.
Iniciou uma vasta investigação sobre a música latino-americana, conferindo aos mais diversos acervos encontrados um status cultural até então inimaginável. Tendo feito inúmeras investigações culturais no Brasil, jamais acreditou na tese de nossos musicólogos de que a música brasileira de concerto se iniciara nos primórdios do século 19 com o padre José Maurício e com os músicos da Corte.
Depois de dezenas e infrutíferas tentativas, batendo na porta das mais diferentes instituições brasileiras, Lange resolveu fazer a pesquisa por sua conta e risco. Com um Jeep adquirido a preço de banana depois da guerra, Lange rumou para as regiões onde o "gold rush" havia propiciado um surto cultural -sobretudo Ouro Preto, Mariana e Diamantina.
Aos poucos Lange foi identificando resquícios de velhas instituições e confrarias (todas de mulatos) e, em casas de família, armários antigos repletos de papel velho com anotações musicais. Eles eram vendidos em época de festas juninas para fazer foguete -papel velho explode fácil, diziam.
Adquirindo e reunindo montanhas dessa papelada em seu apartamento no Rio, Lange foi aos poucos restaurando e identificando um tesouro adormecido por quase dois séculos. Passada a fase inicial de descoberta e restauração daquele surpreendente barroco mulato, Lange iniciou outro calvário: a busca de instituições musicais que editassem e apresentassem as obras.
Nesse momento iniciou-se o bombardeio que culminou com a desonesta reportagem de "O Cruzeiro". Lange nunca se negou a mostrar esses manuscritos que havia adquirido em suas andanças, mas não os repassava a ninguém, pois o Brasil não possuía à época instituições em condições de entender, restaurar e preservar o acervo.
Apavorado com as ameaças que vinha recebendo, Lange colocou todo o material em seu carro e rumou para minha casa em São Paulo. Minha mãe possuía um enorme armário de madeira em uma dispensa. Esvaziamos o móvel para abrigar aqueles pacotes repletos de manuscritos.
Apresentei Lange ao mestre Sergio Buarque de Holanda que, identificando a seriedade do trabalho, o convidou para uma série de palestras na USP. A partir de então ninguém ousou questionar a validade da pesquisa e o valor artístico dos manuscritos.
Na casa, tínhamos uma vira-lata que havia sumido. Depois de alguns dias a encontramos dentro do armário onde estavam as partituras, pouco antes de elas voltarem para a casa de Lange no Rio. Bob, como era chamada, tinha tido quatro filhotes que, no aconchego daquele armário, e sobre "macio estofamento", nasceram com plena saúde.
Brinquei com minha mãe: "Veja que lindos! Todos pretinhos!" Ela respondeu: "Claro, são filhos do barroco mineiro. Você queria que fossem loiros e de olhos azuis?" Não tivemos dúvidas. Homenageamos os mestres mulatos dando o nome deles a cada filhote: Lobinho (Lobo de Mesquita), Neves (Inácio Parreiras Neves, ao mais clarinho), Rochinha (Francisco Gomes da Rocha) e Marquinhos (Marcos Coelho Neto).
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