Autor: Saul Moreira, Micuim.org
Lembro-me de quando ouvi a palavra pela primeira vez. Melhor: quando a aprendi. Melhor ainda: apreendi. Foi no meio de um pequeno tumulto em frente a “A Baiúca”. Ousado líder estudantil, depois de invadir o Acayaca, onde pronunciara discurso desaforado contra o que ele chamara de “elite diamantinense”, contava acalorado o que teria dito. Condenara veementemente a não participação de alunos da Escola Normal Oficial em evento sobre educação, que se realizava naquele clube. Na segunda série do que se chamava ginásio (não confundir com o Ginásio, escola particular dos padres), eu freqüentava com gosto aquele colégio (não confundir com o Colégio das irmãs), depois de aprovado no angustiante Exame de Admissão. Daí, no meio daquele zunzunzum, acho que me senti, também pela primeira vez, um tanto discriminado, “enquanto” (epa!) aluno de escola pública.
Fiquei encantado. Nunca prestara atenção à palavra “elite”, embora já estivesse começando a perceber, com esquisito incômodo, que fazia parte da diamantinense da época. Entusiasmado com a palavra e com a situação, estava pronto para também invadir o clube, no peito e na raça, se fosse preciso. Logo eu, imagina!, que lá podia entrar quando quisesse, e com aquele físico que inspirara o Dr. Pina a tratar-me por Meio-Quilo. Ah, também não havia escutado ainda a expressão “inocente útil” – e ali, aos doze anos, representava agitadamente tal papel. Bom, mas como era de se esperar, logo logo tudo se acalmou, fui comprar um picolé de groselha no Bazar Suez, e a “invasão” ficou para as calendas gregas, como se dizia na época. Restou-me na cabeça a palavra teimosa: elite, elite, elite… Sinônimo de escol, soube mais tarde.
Comecei a desconfiar que havia mesmo coisas estranhas nas relações sociais do dia-a-dia da molecada. Por mais amigos, por mais que, meninos, fôssemos física, mental e religiosamente quase indistinguíveis, mesmo na escola havia os “mais iguais”. Fora da escola, então, era ainda mais patente a “igualdade” de alguns. Tido, com razão, como um povo civilizado à beça, o diamantinense em geral sempre foi atencioso com todo mundo; mas receber “uns e outros” em sua própria casa, p. ex., eram outros quinhentos. As filhas namorarem “qualquer um”? Nem pensar. Aprendíamos todos juntos, com o Anatólio e a Luzia, a nadar na Praça de Esportes, mas freqüentar o Acayaca, só os mais brancos, e desde que civis. A ASSEDI surgiu depois, democratizando, pelo menos um pouco, bailes e horas-dançantes.
Se havia preconceitos? Em algumas situações e determinados lugares imagino que não (acudam com algum exemplo, por favor). Além de que havia sempre os negros de “alma branca”, os “escovados”; os pobres “limpinhos” – esses, sim, eram tratados quase como semelhantes. Atritos raciais? Não, até porque os negros reconheciam o “lugar deles”… Portanto, tudo andava nos “devidos lugares”. Na verdade, acho até que havia, sociogeograficamente, pelo menos duas Diamantinas. Uma que ia mais ou menos do Grupo Júlia até um pouco depois do Matta Machado, numa faixa que englobava da Rua Direita até a do Rosário, ou até a Cavalhada, considerando-se aí margem de erro de uma rua ou duas. A outra, a que talvez se chamaria hoje de entorno. Onde morava a elite branca de então? Adivinha. Algumas exceções? Claro, para confirmarem a regra.
A Diamantina de minha infância, visitada sempre na adolescência, era uma alegria só, sim, mas não pra todos, sequer para a maioria. Apesar de tudo, trago sempre uma saudade grande e doce, embora um pouco acre. E a quase certeza de que hoje só os encantos prevalecem, exorcizados, pelo tempo e pela conscientização, aqueles desencantos. Comemoro com uma Skol (epa, de novo?!)
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