Autor: Saul Moreira, no Micuim.org.
Não sei bem por que cargas d’água me lembrei disso hoje. Talvez porque tenho lido ultimamente um monte de “notícias” vindas do Tijuco sobre pessoas dizendo que a Cidade precisa disto, disso, daquilo, daquilo outro; que se deve fazer uma coisa, outra, mais outra… Qualquer hora um doutor “progressista” vai sugerir que no lugar do Mercado Velho deve-se construir um “xópim”, com ar refrigerado, escadas rolantes… Ou talvez transformar a praça num “párquim”, asfalto, vagas demarcadas…
De repente − quem sabe?− um mais saudosista, recém-retornado, depois de uns 50 anos, não sugerirá, ao contrário, fechar a universidade, mandar alunos e professores e funcionários pras cucuias; reabrir a zona boêmia no centro; voltar com o calçamento pé de moleque… Talvez vetar outra vez a entrada de negros, mulatos e militares no Acayaca… Do jeito que as coisas vão, não estranharei muito “ideias” desse gênero. Mas a lembrança que me veio agora é outra, embora tenha a ver.
Como sempre, não sei em que ano o fato se deu. Mas Diamantina passava uma fase difícil: garimpos se fechando, comércio apertado, muitas famílias “de bem” se mudando pra BH ou pra Sete Lagoas ou pra Montes Claros. O Japão dizia que lá não havia mais capital de giro, mas “dívida de giro” – se um quebrasse pra valer, seria a bancarrota de um monte (previsão que se confirmou pelo menos uma vez que eu me lembre). E nem se sonhava em ser patrimônio da humanidade.
O Pedrelina já não ia muito ao bar, e o Cica, sem o bom humor do pai, assumira o comando do “É Aqui o Seu Cantinho”. E o Cica conversava pouco com quem não conhecia. Atendia bem, sorria meio de lado, mas falava pouco, só o estritamente necessário. E o estritamente dele era bem restrito mesmo. Naquela tardinha, além de mim tinha só mais uns três ou quatro bebericando umazinha e provando umas bolas − umas com farda, outras sem, de acordo com o gosto do freguês − ou um naco de maçã de peito.
Pois eis que adentra o recinto um diamantinense dos recém-retornados à boa terra. Todo fagueiro e cumprimentador, como é característica desses “voltantes”. Crente que todo mundo o reconheceria de cara, depois de uns trinta anos sem dar as caras. Evidentemente, todos fingiram educadamente que o reconheciam. E o cara pede uma pinga, finge que entende daquilo. E pede uma cerveja, serve o copo de todos… E deita falação. E pede mais uma. O Cica vai devagar, serve, passa o pano no balcão. E o cara logo pede outra, e deita mais falação. Que vai fazer e acontecer. Vai modernizar o Tijuco. Que a Cidade precisa disso e daquilo e daquilo mais… Em São Paulo é assim; no Rio, assado; em Barcelona, um monte de trem adaptável a Diamantina. Na América, ele teve um monte de ideias aplicáveis…
Pra encurtar conversa: o sujeito resolve que tem que ir embora correndo, atrasado pra um monte de compromissos que já tinha arrumado pra aquela noite (Deus haveria de saber quanta coisa ocorreria naqueles tempos de paradeiro). Distribui o resto da cerveja no copo dos presentes. Paga e sai apressado, todo amigo de infância, a boca cheia de dentes, gola da camisa suja de gordura.
Faz-se um silêncio total no bar, nós esperando a reação do Cica. Ele passava e repassava o pano no balcão, cabeça meio de banda. Daí a pouco ri de lado e solta: − Como já tô careca de ver, daqui a um mês esse buta quer mudar mais coisa nenhuma aqui. Esperem só pra ver… E foi remexer devagar a carne cozida naquele “mostruário” quente em cima do balcão. E a gente explodiu as gargalhadas suspensas durante toda a falação do novo Reformador do Tijuco − naquele tempo a gente ria à toa à toa.
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