quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Resenha de pesquisa de Wander Conceição é publicada na Revista da Academia Mineira de Letras

Apresentação da Revista Ano 92º – Volume LXIX – 2014

Capa Revista AMLEstamos entregando ao público que nos acompanha mais um número da Revista da Academia Mineira de Letras, volume LXIX. Registramos, assim, o nonagésimo segundo ano de vida de um periódico que é uma síntese do pensamento dos integrantes da Casa de Alphonsus, Vivaldi e Murilo Badaró.

Por estas páginas já desfilaram as mais prestigiosas e autênticas expressões das letras e do jornalismo de Minas Gerais, mesmo do Brasil, porque a Revista não é uma porta fechada aos que se devotam ao nobre ofício em outros estados. A prova disso se acha neste volume, a que comparecem escritores e pesquisadores de várias regiões do país.

Assim pensando e fazendo, esperamos manter nossa periodicidade normal, contando com a colaboração dos atuais e dos próximos acadêmicos e de quantos, de qualquer parte do Brasil, tragam sua mensagem e o propósito de bem servir às letras e à cultura.

A influência mineira para o advento da bossa nova

Wander Conceição *

Em 1990, a editora Companhia das Letras lançou no mercado brasileiro o livro Chega de Saudade – a história e as histórias da Bossa Nova, autoria do jornalista Ruy Castro. Considerado a bíblia do mais expressivo movimento musical do Brasil reconhecido pelo mundo, o livro foi traduzido para vários idiomas e se tornou um best-seller. Nas páginas 146 e 147, o autor fez alusão à passagem de João Gilberto por Diamantina em meados da década de 1950 e informou que, naquele período, o músico baiano se comportou como um sujeito anacoreta excêntrico, trancafiado num banheiro, para desenvolver o ritmo que revolucionou a música popular brasileira e encantou o planeta.

Há que ponderar que o referido período diamantinense não foi objeto de pesquisa do jornalista Ruy Castro que, cumprindo o propósito de somente citá-lo, registrou em seu livro as informações a ele repassadas por terceiros. Contudo, a forma como se referiu a Diamantina propende a criar, facilmente, no imaginário do leitor que não conhece sua história, a idéia preconcebida de uma cidade desconhecida e inexpressiva, perdida entre as montanhas do interior do Brasil. Ao contrário, Diamantina é um referencial histórico, cultural e político da nação brasileira. Ofereceu contribuição singular para a formação, aprimoramento e evolução do Brasil, fator preponderante que justificou seu reconhecimento pela UNESCO, em 1º de dezembro de 1999, como cidade Patrimônio Cultural da Humanidade.

De mais a mais, a contribuição de Diamantina para o desenvolvimento da música brasileira vai muito além do fato de a cidade ter oferecido sossego e reclusão para João Gilberto realizar suas experiências. A bossa nova foi o resultado de um movimento de ruptura com os paradigmas que delineavam as canções populares do país. Em meados da década de 1950, consolidaram-se a renovação da linguagem, a renovação harmônico-melódica e a renovação do ritmo da música popular brasileira, cujos atores principais foram Vinícius de Moraes, Antônio Carlos Jobim e João Gilberto, respectivamente.

O enlace desses três elementos renovados gerou a bossa nova. Ao se considerar que essa fusão ocorreu, efetivamente, em 1958, emerge a figura do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, que havia feito a opção pelo estado democrático como prerrogativa de governo. No mesmo dia em que tomou posse na Presidência da República, 31 de janeiro de 1956, JK suspendeu a censura à imprensa, às rádios e televisões, e encaminhou uma mensagem ao Congresso, abolindo o estado de sítio, decretado pelo seu antecessor, Nereu Ramos. A democracia aparece como o quarto elemento que interferiu na concepção da bossa nova, visto que suscita um imponderável: será que a reboque de um regime político autoritário e repressor, com a imprensa amordaçada, as artes em geral teriam avançado naquele tempo, da forma como avançaram no governo democrático de JK?

Imponderável à parte, a verdade é que em seu governo evolveram as letras, a arquitetura, o urbanismo, a pintura, a informação, a pesquisa em diversos campos da ciência. Explodiu o cinema novo. Ocorreu um desenvolvimento que impulsionou a produção de riquezas nacionais. No esporte, Adhemar Ferreira da Silva Pudger conquistou a medalha de ouro do salto triplo, nos jogos olímpicos de Melbourne, Austrália, em 1956. O futebol brasileiro sagrou-se campeão mundial em 1958, na copa da Suécia. Maria Esther Andion Bueno alcançou o posto de tenista nº 1 do mundo, na conquista dos torneios de Wimbledon em 1959 e 1960, e a U. S. Championships em 1959. Éder Jofre conquistou o título mundial de boxe, na categoria peso – galo, no mês de agosto de 1960. Exatamente nesse cenário de esperança, entusiasmo e alegria, e sobretudo de credibilidade nas potencialidades nacionais, emergiu a bossa nova.

Entrementes, a preocupação de JK pelo estado democrático no Brasil não se deu de forma instantânea, como um clique repentino espocado no primeiro dia de seu mandato presidencial. Em depoimento concedido a Maria Victoria de Mesquita Benevides, para o projeto de história oral do Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil – CPDOC, JK afirmou que seu senso democrático foi adquirido desde tenra idade, em conseqüência de sua origem modesta, situação que o ajudou a desenvolver, ainda muito jovem, os sentimentos de eqüidade e de justiça. Além desse motivo, citou o sistema administrativo repressivo instituído em Diamantina desde os tempos coloniais, construído sobre uma legislação impositiva, cuja rigidez terminou encorajando o povo diamantinense a desenvolver um apurado sentimento de independência e de liberdade, atributos tão inerentes à democracia. Concluiu sua explanação com a seguinte afirmativa:

Assim, quando perguntam por que desenvolvi esse sentimento democrático: eu bebi isso no leite, no café, no ar de Diamantina, nas serenatas da minha terra. Eu aprendi esse sentimento de liberdade e guardei com tanta força que, quando a providência, o destino me trouxe ao palco... [1]

No mês de maio de 1956, o Brasil já convivia com o estado democrático, quando os elementos constitutivos da bossa nova começaram a se entrelaçar. Vinícius de Moraes necessitava de um compositor que lhe escrevesse a música para sua peça Orfeu da Conceição, com o mesmo espírito modernizador que ele empreendera na adaptação feita na linguagem da peça original. O poeta havia convertido a lenda de Orfeu, uma tragédia grega, em uma representação teatral exibindo uma tragédia carioca. Orfeu, um semi-deus grego, virou um sambista negro da favela e foi inserido na agitação do carnaval do Rio de Janeiro. Diplomata, recém-chegado de Paris, Vinícius trouxera o livreto, com versos adaptados à sua versão, todo pronto. Faltavam as canções, nas quais o poeta colocaria as letras. Foi apresentado ao músico Antônio Carlos Jobim por Lúcio Rangel, no bar Villarino no Rio de Janeiro. Esse momento marcou o encontro da música e da poesia renovadas, que passaram a caminhar lado a lado com a perspectiva de modernidade que tanto se perseguia no país.

Na vanguarda do movimento modernizador da música nacional, Vinícius foi quem se destacou como o grande revitalizador das letras para as canções populares. O feito de impacto que complementou o processo de renovação da linguagem foi sua decisão em introduzir elementos característicos da poesia culta nos versos construídos para a música popular. Diversos críticos musicais, dentre os quais Tárik de Souza, creditam ao poeta Vinícius de Moraes o mérito da popularização da poesia culta, por intermédio de sua utilização na composição de letras para a música de massa.

Todavia, tal e qual o processo de opção pelo estado democrático ocorrido com JK, Vinícius de Moraes não tomou a decisão de popularizar a poesia culta, assim, num repente. Ao se recorrer à biografia do poeta, constata-se que sua formação tomou por base a tradição das famílias nobres do Rio de Janeiro. Recebeu educação conservadora desde os tempos de infância, estudando no Colégio Santo Inácio, de influência jesuíta. Agraciado com uma bolsa do Conselho Britânico, seguiu em 1938 para a Inglaterra, onde estudou língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford. Um escritor de formação genuinamente clássica não se encaminharia de maneira repentina para o universo da cultura popular, sem antes ter sofrido influências que contribuíssem para essa aproximação. Posteriormente, inclusive, Vinícius de Moraes chegou mesmo a se intitular “o branco mais preto do Brasil”, depois de estabelecer relações com o candomblé.

Corrobora o raciocínio anterior afirmativa do próprio Vinícius, em entrevista concedida a Zuza Homem de Mello, na qual o poeta relata que, após escrever algumas letras para canções populares, num período bastante curto de sua adolescência, afastou-se inteiramente desse estilo de composição, em decorrência de sua afirmação como poeta clássico no cenário nacional:

Bom, a partir daí, por ter-me tornado poeta no sentido mais clássico da palavra, abandonei totalmente a composição de música popular por me parecer na ocasião uma arte menor. Eu lembro que quando tirei o prêmio Felipe de Oliveira – um prêmio nacional de poesia – eu era muito moço ainda, tinha 21 para 22 anos e aquilo me subiu um pouco à cabeça. Fiquei me achando uma espécie de gênio nacional. Depois verifiquei que não era nada disso. Mas, talvez por ser um poeta conhecido e com livros publicados, deixei de lado a composição da música popular por muito tempo. [2]

Portanto, a inclinação para escrever uma poesia renovada para a música popular brasileira foi-se desenvolvendo em Vinícius de Moraes por intermédio de um conjunto de influências recebidas ao longo de sua vida, como aquelas inerentes ao ambiente boêmio e popular do Rio de Janeiro, com as quais o poeta conviveu. Dentre as influências recebidas, há que levar em consideração o seu relacionamento com vários agentes do movimento folclorista deflagrado na década de 1930, num país continental, com fronteiras internas permeáveis. A organização do estudo do folclore no Brasil somente se consolidou após a criação da UNESCO em 1945, que recomendou aos países membros um esforço no sentido de criar organismos voltados para o conhecimento de suas culturas populares. Era consenso entre os folcloristas que o conhecimento da sabedoria popular e sua interpretação coletiva são ferramentas de vital importância para a compreensão e manutenção da identidade nacional.

Esse movimento se organizou no seio do Palácio Itamaraty, exatamente a instituição à qual Vinícius estava vinculado, exercendo a função de diplomata. Os intelectuais brasileiros perceberam, na recomendação da UNESCO, a grande chance de realizarem um velho sonho, de modo que, logo depois, articularam o Movimento Folclórico Brasileiro. Contudo, a desilusão com experiências anteriores obrigou-os a reconhecer que sua antiga intenção de registrar e proteger as manifestações folclóricas somente poderia ser alcançada, se o órgão destinado a essa tarefa tivesse algum prestígio junto ao centro de poder. Assim, para dar visibilidade ao movimento, a ordenação para viabilizar esses estudos foi promovida, estrategicamente, no interior do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura – IBECC, órgão sucursal da UNESCO, com sede no Palácio Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores. Por se tratar de uma instituição de prestígio, o Itamaraty seria o canal mais apropriado para se atrair visibilidade junto ao poder central do país, o caminho ideal para atingir o reconhecimento do estudo do folclore no Brasil.

Por intermédio do professor Renato Almeida, folclorista e também diplomata, criou-se a Comissão Nacional do Folclore em 1947, anexa ao IBECC. Para ampliar e ramificar suas ações em todas as unidades da federação, instalaram-se comissões estaduais, filiadas à Nacional. O estado de Minas Gerais foi o primeiro a instituir sua comissão, escolhendo o diamantinense, filólogo e folclorista, professor Augusto Aires da Mata Machado Filho para presidi-la. Junto com grandes estudiosos do folclore nacional, dentre os quais, Luis da Câmara Cascudo e Dante de Laytano, o professor Aires e a Comissão Mineira de Folclore ajudaram a deflagrar um grande movimento de organização do folclore no Brasil, que culminou com as Semanas Nacionais do Folclore realizadas em 1948, 1949 e 1950, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, respectivamente. Depois vieram os Congressos Brasileiros de Folclore, no Rio de Janeiro em 1951 e em Curitiba em 1953. Por fim, o Congresso Internacional de Folclore, realizado em São Paulo, em 1954. Esses certames influenciaram toda a intelectualidade brasileira, e Minas Gerais se fez representar em todos eles, levando sua imensa contribuição.

Acrescente-se a esses fatos a visita do músico mineiro Ary Barroso a Belo Horizonte, em fevereiro de 1943, onde realizou apresentações no Cassino da Pampulha e no Cine Teatro Brasil. Justificou aquela viagem, do Rio de Janeiro para o seu estado, pela necessidade de “voltar a sua atenção para as riquezas inesgotáveis do folclore mineiro, anunciando visitar as mais históricas e tradicionais cidades de Minas Gerais”. A primeira cidade histórica mineira que Ary Barroso visitou foi Diamantina, a convite de JK, então prefeito de Belo Horizonte. Permaneceu uma semana na cidade, onde ofereceu dois concertos artísticos em companhia da cantora Dolores Bragança, intérprete consagrada das canções folclóricas brasileiras. Naquela semana, Ary Barroso conviveu com as tradições locais e coligiu elementos do folclore diamantinense, cumprindo o objetivo de sua visita. Diga-se de passagem, Ary Barroso foi um dos mais importantes precursores da bossa nova, juntamente com Johnny Alf e João Donato, dentre outros.

Foi um Vinícius de Moraes seduzido por essas influências e despido de conceitos padronizados que encontrou Tom Jobim em maio de 1956, quando o Brasil terminara de fazer a opção pelo estado democrático. Ao discorrer sobre a evolução por que passou a cultura brasileira durante o governo JK, o jornalista Cláudio Bojunga fez uma digressão à mitologia grega, para destacar a situação privilegiada do Rio de Janeiro, ponto de convergência das diversas culturas regionais brasileiras. Em sua afirmativa, utilizou a figura de Prometeu, representante do trabalho, da produtividade, do progresso e do desempenho, aliada à figura de Orfeu, representante da alegria, da satisfação e do prazer:

E então, no Rio, nos últimos anos em que a cidade foi capital, Orfeu se aliou a Prometeu numa onda renovadora nas produções do espírito. Não foi fenômeno carioca, mas brasileiro: o Rio foi apenas o ponto de encontro de paulistas, baianos, maranhenses, mineiros, capixabas, piauienses, paraibanos, pernambucanos etc. Nessa forja surge uma nova poesia, uma nova pintura, um cinema novo, um novo samba, um jornal novo. [3]

Quando Lúcio Rangel optou por apresentar Tom Jobim ao poeta Vinícius de Moraes, tinha consciência de que estava indicando um músico diferenciado e, principalmente, ousado que, naquela altura, já introduzira elementos peculiares à música erudita no universo da música popular. Por essa razão, seria o músico ideal para compor as melodias das canções para a peça Orfeu da Conceição. Tom Jobim utilizava acordes dissonantes com maestria, costume que ainda não era habitual no acompanhamento das canções populares tradicionais. Havia desenvolvido também a habilidade de empregar o processo de inversão da posição basilar dos acordes, recurso que ajuda o acompanhamento sobressair, ao gerar uma sensação de dissonância naquilo que era consoante na essência. Tradicionalmente, no acompanhamento da música popular brasileira, sempre se utilizavam os acordes em sua configuração básica.

Há que destacar, entretanto, que, quando essas experiências de inserção de elementos novos na construção, na harmonização e no acompanhamento das músicas populares foram efetuadas, Tom Jobim já vivenciava, no Rio de Janeiro, uma atmosfera totalmente propícia a novos experimentos, paulatinamente construída, ao longo de um processo gradativo de evolução da musicalidade brasileira. Não obstante sua genialidade indubitável, o Rio era a capital federal, além de ostentar o status de cartão postal do Brasil, para onde convergiam, e ainda convergem, todas as influências, tanto exteriores ao país, quanto as interiores originadas de suas mais variadas regiões. Portanto, são muitas as influências que possibilitaram estabelecer-se no Rio de Janeiro, na década de 1950, um ambiente musical propício ao surgimento de uma “onda renovadora”, neste aspecto, enriquecida, de forma notável, pelo talento de Tom Jobim. Ao estudar a musicologia brasileira, o musicólogo alemão Francisco Curt Lange se opôs às teorias que insistiam em isolar a música que se desenvolveu no Rio de Janeiro do fenômeno musical ocorrido em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX, por meio da seguinte advertência:

Onde se têm visto, na História da Humanidade, elevar-se num deserto musical um gênio, quando o gênio é produto dum desenvolvimento prévio e dum ambiente favorável às suas condições excepcionais? Jamais existiram ilhas culturais isoladas, autônomas, que não recebessem influências de outros centros, que não as tomassem para si por necessidade de se superarem. As teorias do surto de genialidades solitárias e de movimentos autônomos são apenas conseqüências dos credos chauvinistas, ignorados completamente na Europa dos neerlandeses em Veneza e da Ópera italiana em São Petersburgo, Dresden, Munique e Viena, de Handel na Inglaterra, e dos músicos espanhóis ao serviço de Teodósio II, em Vila Viçosa. [4]

De acordo com as pesquisas publicadas por Curt Lange, cada associação religiosa leiga criada em Minas Gerais promovia, anualmente, uma festa dedicada ao seu santo ou santa de devoção. Além dessas festas, com suas procissões, o calendário litúrgico era vasto, pois se realizavam, ao longo do ano, ladainhas, novenas, terços, tríduos, trezenas, missas cantadas, culto das almas, ofício de Trevas etc. Havia, ainda, as procissões maiores como os cortejos do santo padroeiro do lugar, da Semana Santa, Corpus Christi e Santíssimo Sacramento, como também as necessidades musicais particulares da sociedade civil. Em todas essas ocasiões, encomendavam-se músicas aos mestres. Remunerados pelas associações religiosas, os músicos mineiros desempenhavam seu ofício de forma estritamente profissional. Desse modo, no século XVIII, desenvolveu-se em Minas Gerais uma atividade musical de excepcional qualidade, sem precedentes na formação de todo o continente americano, conforme avaliou Curt Lange.

Essa expressividade musical deixou legado riquíssimo no estado, perpetuando-se pelos séculos seguintes. Contudo, sistematicamente, desde o século XVIII, uma avalanche de músicos mineiros se transferiu para o Rio de Janeiro, ajudando a alterar, de forma substancial, o ambiente musical fluminense. As crises ocorridas na mineração em Minas Gerais, que reduziram drasticamente a capacidade financeira das associações religiosas, foram determinantes para essa migração. Em Diamantina, especificamente, houve a segunda crise dos diamantes, na virada do século XIX para o XX, somada, no mesmo período, ao processo de romanização da Igreja Católica, que retirou a autonomia e independência das associações religiosas, subordinando-as à autoridade dos bispados. Nesse contexto, Diamantina também exportou diversos músicos para o Rio de janeiro, dentre eles, dois expoentes de primeira grandeza: José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, considerado um dos mais importantes músicos pré-clássicos das Américas, e o maestro Francisco Nunes Júnior, fundador da Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro, juntamente com o maestro Francisco Braga, compositor do Hino à Bandeira.

Tom Jobim bebeu na fonte de um ambiente musical revigorado por todas essas contribuições para produzir uma renovação harmônico-melódica que, embora se aliasse a uma renovação na linguagem para produção do musical da peça Orfeu da Conceição, necessitava de um preparo glutinoso que fundisse essa união inovadora de forma hermética. Esse terceiro elemento foi desenvolvido em Diamantina por João Gilberto.

Ao se colocar em prática o binômio “Energia e Transportes”, que norteou o programa de JK à frente do governo de Minas Gerais, quatorze estradas-tronco estaduais foram abertas para ligar Belo Horizonte a todos os quadrantes do estado. A principal, com pouco mais de 900 km, foi a rodovia Belo Horizonte – Salto da Divisa, passando pela região nordeste de Minas e desembocando na rodovia federal Rio – Bahia. Diversas empreiteiras foram contratadas, respondendo pelo serviço em trechos específicos da rodovia. Para o trecho de Diamantina até seu distrito de Mendanha, foi contratada a empreiteira Companhia Mineira de Obras, cujo engenheiro responsável pelo serviço era Péricles Rocha de Sá, casado com Maria da Conceição Oliveira Sá, conhecida por Dadainha, irmã de João Gilberto.

Afastando-se do Rio de Janeiro com o intuito de aliviar o processo depressivo de que padecia, João Gilberto passou duas temporadas morando com sua irmã Dadainha, em Diamantina. A primeira fase foi de setembro de 1955 a junho de 1956, data em que a Companhia Mineira de Obras suspendeu seus trabalhos na variante da Serra de São Francisco e o Dr. Péricles pôde viajar com a família para a Bahia. Ao se confrontarem algumas informações orais, com registros efetuados em fontes primárias, torna-se possível afirmar, categoricamente, que João Gilberto passou outra fase em Diamantina, possivelmente, de setembro de 1956 a maio de 1957. Desta feita, entretanto, seguiu para o Rio de Janeiro ao deixar a cidade, levando consigo um ritmo renovado para o acompanhamento da música popular, desenvolvido por meio de um processo contínuo e exaustivo de treinamento obsessivo no violão.

A modificação que João Gilberto introduziu no acompanhamento das músicas populares foi a utilização sucessiva de síncopes para produzir o ritmo. A marcação do ritmo passou a não se apoiar no tempo de repouso naturalmente esperado, desvinculando-se da forma de sustentação tradicional, em que o acompanhamento se apoiava habitualmente. Em linhas gerais, pode-se dizer que o acorde passou a ser atacado em um momento de transição entre os tempos basilares da pulsação do compasso musical, evitando-se sua emissão no tempo basilar seguinte, para ser atacado novamente num momento de transição. De acordo com o jornalista e crítico musical Zuza Homem de Melo, esse artifício “provoca uma tensão, uma sensação de que é preciso seguir adiante”. Ao se realçar o momento de transição, “cria-se o impulso rítmico, a leveza, o balanço, o molho, o swing. Quanto mais tensão, mais swing e mais leveza”.

João Gilberto conviveu com inúmeras pessoas em Diamantina, mas que não participavam, necessariamente, do mesmo grupo social na cidade. Duas situações mais específicas proporcionavam sua aproximação com essas pessoas: quando podia trocar experiências musicais sem ser incomodado e quando lhe transmitiam a confiança de poder expressar-se com seu modo inteiramente filosófico. Assim, há relatos que destacam João Gilberto visitando pessoas que possuíam piano em casa, como também, em situações raras, exaltando a poesia vanguardista do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade.

Em linhas gerais, as pessoas que conviveram com João Gilberto se recordam de um homem extremamente calado e reservado, mas que, quando se expressava, era de uma inteligência incomum, filosófico e de fino trato. Aqueles que conviveram de forma um pouco mais íntima com ele relatam que era um homem a frente de seu tempo, por isso incompreendido de maneira geral, situação que lhe rendeu a qualificação de “meio doido” por alguns. A maioria dos músicos da cidade com quem ele dividiu momentos musicais, principalmente alguns seresteiros, não conseguiu assimilar de imediato a batida que ele estava desenvolvendo, afirmando que sentiam a sensação de que João Gilberto fazia um “acompanhamento desafinado e desencontrado”. Houve, entretanto, um número reduzido de pessoas com uma sensibilidade musical mais apurada que viam naquela experiência um fenômeno extraordinário.

Embora cada pessoa que testemunhou o processo de elaboração do novo ritmo o tenha assimilado conforme suas próprias convicções, três situações podem ser asseveradas como verdade absoluta. Primeiramente, há que desmistificar a questão do banheiro. Não era aquele espaço o principal local de treinamento de João Gilberto, onde o músico passava a maior parte do tempo tocando violão, mas sim o seu pequeno quarto, localizado na parte do fundo do pavimento inferior do sobrado onde morava. Quando possível, o banheiro era utilizado como se fosse uma caixa acústica, cumprindo a função de um laboratório, no interior do qual, o som do violão e de sua voz refletiam nos azulejos e reverberavam, possibilitando ao músico escutar a si próprio. A única pessoa a quem João Gilberto permitiu dividir consigo esse momento íntimo foi seu amigo Búbi que, ao descrever os ensaios no interior do banheiro, cita que o violonista beijava uma pequena imagem de Santa Terezinha, antes de começar a tocar.

Depois, considerando-se que várias pessoas, dispersas por diferentes cidades, e sem nunca terem-se encontrado após se mudarem de Diamantina, tenham feito o mesmo relato sobre a convicção com que João Gilberto afirmava que seria sucesso nacional, ao desenvolver a nova batida do violão, pode-se inferir que o músico sabia perfeitamente o que estava fazendo e aonde queria chegar. Por fim, deve ser ressaltado que a primeira cantora, possuidora de voz de rara beleza, acompanhada por João Gilberto ao violão, com o ritmo inédito da bossa nova já formatado, foi a diamantinense Terezinha Mariúcha Cruz.

Ao chegar com esse novo ritmo ao Rio de Janeiro, João Gilberto conseguiu selar, de forma contundente, os elementos constitutivos da bossa nova, que explodiu logo depois no Brasil, levada a efeito pela insatisfação de diversos músicos e compositores com a produção musical construída de forma convencional, atraídos, naquele momento, pela modernidade que se apresentava a um país que, definitivamente, havia feito a opção pelo afastamento de sua condição de nação subdesenvolvida.

* Pesquisador, poeta, graduado em Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina, autor de Caminhos do Desenvolvimento, La Mezza Notte e A Terra, o Pão, a Justiça Social.


[1] OLIVEIRA, Juscelino Kubitschek de. Juscelino Kubitschek I (depoimento 1974). Rio de Janeiro: CPDOC. 1979. p. 5.

[2] MORAES, Marcus Vinícius da Cruz de Mello. In. MELLO, Zuza Homem de. Eis aqui os Bossa-Nova. São Paulo: WMF Martins Fontes: 2008. p. 228.

[3] BOJUNGA, Cláudio. JK – O Artista do Impossível. Rio de Janeiro: Objetiva. 2010. Ed. de bolso. p. 624.

[4] LANGE, Francisco Curt. Os Compositores na Capitania Geral das Minas Gerais. Marília: Separata da revista Estudos Históricos, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Marília. 1965. nº. 03 e 04. pp. 85-86.

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