Autora: Sandra Starling, publicado no Jornal O Tempo no dia 12/10/2011
Não sabe o leitor o quanto me doeu escrever este artigo. No dia 29 de setembro, em Santa Luzia, resolvi fazer algo adiado há muito: rasgar velhos papéis, seguindo a tradição chinesa segundo a qual não se devem guardar lembranças de tempos passados. Passei a manhã fazendo isso e só não rasguei um singelo cartão a que me já referi nesta coluna e que dizia: "tu hai raggione ma io no sono in torto". Essa expressão me fez reconhecer a importância da tolerância na vida. À tarde, recebi a notícia de que seu autor, padre Magela, havia falecido.
Conheci-o quando eu tinha 14 anos de idade, na cidade de Diamantina, onde ele, vigário da catedral, era redator-chefe do jornal da arquidiocese, "A Estrela Polar". Embalado pelo espírito de João XXIII, estimulou-nos a formar um núcleo da Juventude Estudantil Católica na cidade. Magela militava ao lado dos oprimidos e me ensinou tudo quanto aprendi sobre justiça social. Não sei dizer por que ele me convidou a escrever crônicas semanais, que eu publicava sob o pseudônimo de "Jacqueline" (afinal, aqueles eram tempos de "glamour" do casal Kennedy). Meus escritos faziam muito sucesso entre os leitores do jornal, mas, às vezes, muitas vezes, me arrependi de ter assumido aquele compromisso porque o padre pegava no meu pé às quintas-feiras, cobrando-me o texto que ainda iria para a tipografia.
Aí, tomou posse como novo arcebispo dom Geraldo Proença Sigaud, ícone do conservadorismo eclesiástico. Logo proibiu minhas crônicas, o que muito me alegrou, porque fui convidada a escrever no jornal de maior circulação, "Voz de Diamantina", no qual permaneci até sair da cidade rumo a Belo Horizonte.
Pouco antes disso, padre Magela havia sido transferido para Guanhães. Nosso grupo de jovens da JEC rebelou-se contra a transferência. De Guanhães chegaram justos protestos por eu haver escrito sobre aquela "cidadezinha qualquer" para onde nosso mentor havia sido designado. Magela deu um jeito de promover um encontro de jovens das duas cidades e lá fui eu, como "conferencista", falar sobre a fome no mundo. Foi a primeira vez que me dirigi, pessoalmente, a uma audiência. Sob as bênçãos do vigário, fizemos as pazes: a juventude de Guanhães e eu.
Pelos tempos afora, nossas vidas cruzaram-se em muitos momentos. O pior deles: ambos fomos cruelmente afastados, nos mesmos dias, do que havíamos escolhido fazer. Ele, da PUC; eu, do governo Lula. Dele a lição maior: a convicção na transitoriedade das práticas humanas que colocam no limbo aqueles que ousam agir contra preceitos tidos como universais.
Há pouco havia me pedido que lhe trouxesse de Brasília a festejada edição do Senado Federal da monumental obra de Otto Maria Carpeaux, "História da Literatura Ocidental". Busco, pois, entre os melhores de nossa literatura nacional para, com Mário de Andrade, dizer que o meu querido e inesquecível amigo Geraldo Magela tornou-se uma estrela. Quem sabe, uma estrela polar.
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