terça-feira, 13 de novembro de 2012

Mudanças

Autora: Adriana Parentoni

Era uma casa com cara de casa daquelas de roça em plena cidade. Digo casa de roça não no sentido pejorativo, mas sim por causa da forma das janelas de madeira bruta, com dezenas de quadradinhos de vidro emoldurado; que sempre agarravam em algum ponto durante sua abertura. Casa com um tipo próprio de pintura, que ressaltava as janelas com tons marcantes e recobria a casa no velho branco da cau. Casa de roça, pelo tamanho e aconchego da cozinha e é claro, pelo quintal enorme nos fundos, com um pé de abacate para fazer sombra a quem não estivesse querendo ficar no sol escaldante da lida por muito tempo. Claro que numa casa destas não poderiam faltar na varanda os ganchos para a rede e era ela, a rede, para aquela moradora o símbolo da preguiça e da paz local....

Dentro daquela casa era possível vê-la abrindo as caixas de todos os tamanhos, espalhadas por toda parte. Todas elas enumeradas e ela com a folha contendo o número e o conteúdo de cada uma nas mãos. Eram cerca de 30 caixas grandes. A imprecisão não se deve à sua listagem e sim às que estavam espalhadas na sala da casa, pois eram tantas!!! O interessante é que ela continuava a mesma gordinha de sempre, boa cozinheira, muito bem humorada e rindo sozinha de toda aquela bagunça. Afinal, ela sempre detestou a bagunça, talvez porque seus pensamentos já fossem suficientemente bagunçados...

Naquela tarde ela estava quase exausta, depois de três dias embalando cada coisa e colocando-as nas respectivas caixas. Mesmo assim, ela se sentia contente com o que tinha lhe acontecido. E eram tantas as coisas que passavam na sua cabeça. Cenas extremamente felizes de muitas chegadas e tantas outras extremamente tristes, de tantas partidas... Era como se sentada naquele canto da sala ela estivesse em outra dimensão. Como se estivesse tendo uma chance única de avaliar sua própria vida.

As pernas cruzadas, a calça jeans com o botão já aberto, os pés descalços imundos, a camisa de malha que antes era branca, ali já estava bege escura com a poeira... e a tão imprescindível tesoura em punho... Ela se lembrou de quando ainda era pequenininha e estava no jardim de infância. Lembrou-se da Ligia Loiola, sua amiga daqueles dias e que curiosamente continua fazendo parte dos seus amigos até hoje... Engraçado como naquela época éramos capazes de guardar o nome e o sobrenome das pessoas e hoje nem sabemos mais quem somos... Ela tinha sua tesourinha, muito bem marcada pelas etiquetas que sua mãe cuidadosamente tinha feito, sua cadeirinha azul predileta e seu lugar na sala minúscula lotada de crianças...mesmo assim, ai de quem sentasse no “seu lugar.” Era briga na certa. Ela tinha desde muito pequena uma espécie de auto-determinação, o que significa dizer que, uma vez que ela tivesse decidido algo, dificilmente voltaria atrás.

Aos 30 ela montou seu primeiro apartamento. Mesmo tendo pensado nisso muitos anos antes, com sua inseparável amiga Ligia. O curioso é que a palavra inseparável neste caso era um tanto quanto relativa, pois elas estudaram juntas no ginásio e no colegial, mas Ligia foi para a Fisioterapia um ano antes dela e assim perderam o contato por longos e preciosos anos, até se reencontrarem por mero acaso num shopping da cidade. Falaram novamente sobre o passado, mas ficou claro que cada uma tinha escolhido um presente bem diferente, ainda que os sonhos de morar sozinha ainda estivessem vívidos em seus corações.

Ela depois de 9 anos num determinado formato de vida, que para ela começou a ser alucinante, percebeu que não era mais feliz e resolveu mudar. Para qualquer pessoa isso seria encarado como algo natural, mas para ela não! Para ela não era bem assim, pois jamais seria simples...por mais que ela tentasse. Por trás de toda a sua fortaleza havia o medo do incerto, ainda havia aquela criança dos tempos do primário, insegura sobre suas reais capacidades e possibilidades...porém, igualmente havia um sonho...ainda que aparentemente piegas...ela alimentava dia após dia o sonho de ser feliz...

Não sei a opinião daqueles que já se mudaram antes, mas mudar, mesmo em coisas pequenas, exige uma espécie de luto, para que possamos nos atirar de novo à vida. É preciso de certa forma ser capaz de enterrar o velho, o que ficou ou o que simplesmente passou... Mudar implica sempre em aceitar desafios, conquistar normalmente sozinho um território completamente desconhecido, que nem sempre é amistoso. É uma aposta...é parte de um jogo, é simplesmente se arriscar a viver...

Nossa vida tem um curso próprio, que nem sempre escolhemos, mas que simplesmente vivemos... Ela sempre detestou as mudanças, afinal, mudar para ela significava encarar o novo... assumir riscos...e a palavra arriscar vinha sempre seguida de ganhos ou perdas...e justamente pela dúvida ela nunca se sentia apita ou confortável o suficiente para arriscar.

Ali sentada no canto da sala da nova casa ela se lembrava dos namorados que teve, concluía naquele instante que eles não foram muitos nem poucos...foram fascinantes, suficientes e muito diferentes. Pensava que se estivessem todos ali talvez as coisas se organizassem mais rapidamente. Pois o seu último, por exemplo, era um intelectual e certamente arrumaria seus livros em ordem alfabética e deixaria o seu escritório impecável. Tinha o festeiro que lhe traria certamente uma cerveja gelada pingando pela sala afora e perguntaria onde colocar a churrasqueira para ir começando a arrumar o almoço. Tinha o bonachão que iria chamar por ela, porque não tinha achado onde ela havia posto o controle da TV ou  para lhe perguntar se já havia algo para beliscar, pois ele estava cansado e faminto...e pensando nisso ela foi abrir a geladeira para ver o que encontrava.

Como em dias de mudança as comidas são escassas, ela fez um misto quente e continuou pensando, afinal, tinha tido também o namorado mecânico-eletricista que iria testar todas as tomadas antes de ligar os eletro-domésticos e que, certamente, gritaria para ela desligar a chave de luz geral enquanto instalava o chuveiro e depois a máquina de lavar. Mas o que ela mais se lembrava era do romântico, pois ele certamente lhe traria um bom vinho e um queijo para comerem e se amarem em seguida...e assim respirou de certa forma aliviada por tudo que já tinha vivido até ali.

Mas abrindo seus olhos ela se viu novamente sozinha na sala. Quase tudo a ser colocado no lugar e ninguém, absolutamente ninguém por perto. Ela pensou em como era difícil fazer as coisas assim, sozinha. Mas até ali a vida dela tinha sido basicamente desta forma e tinha funcionado, porque desta vez seria diferente??? Porque ela pensou que não seria capaz ??? E por um momento ela parou tudo que fazia e se deitou na rede da varanda e cobriu o corpo com a colcha de nuvens que tinha ganhado de uma amiga da Espanha, sem querer pensar em nada.

Quantas caixas a serem arrumadas havia ainda no seu coração... quantas pessoas, quantas passagens, quantas viagens...quantas partes dela se quebraram ao longo do tempo para chegarem até ali...quantas vezes ela se reinventou para ter coragem...quanto medo ela viveu secretamente. Porque se cansar agora??? Porque partir agora??? Porque o medo mais uma vez lhe paralisava o coração? Não sei dizer quanto tempo ela ficou ali, deitada encolhidinha num canto da rede, envolvida por seus pensamentos. Caiu a noite, vieram as estrelas, apareceu a luz da lua cheia linda, linda daquele lugar e de repente ela foi desperta com a brisa, que lhe dava um beijo carinhoso, um sorriso gostoso, com um abraço tão caloroso que pensava estar sonhando.

Ele não veio ajudar na mudança, veio inaugurar sua cama,  lhe dar segurança,  lhe chamar para dançar a nova dança e porque não, lhe ajudar a perder o seu medo eterno das mudanças.

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