Autora: Adriana Parentoni ( 01/10/2011 – para o pai da minha amiga Vanessa)
Eram dois homens humildes que percorriam o interior mineiro para verificar denúncias de infrações florestais, infrações estas, que, desde sempre, eram muitas... Lá pelos idos de 1968, a dupla já viajava junta fazia muito tempo, sendo que um era o fiscal e o outro o motorista. O primeiro era um pouco maior e mais pesado que o segundo.
Certo dia, eles perceberam que faziam a mesma coisa há mais de seis anos e como as condições financeiras de ambos não eram nem um pouco confortáveis, pois tinham mulher e filhos a criar, havia um trato entre eles relativo ao preço das diárias nos locais que iam fiscalizar. O trato era bem simples, pois, naquela época, o que recebiam juntos de diária era cerca de 40 cruzeiros, mas só se permitiam pagar no máximo 5 por dia. O resultado disso já era esperado, pois batiam o olho nas placas das pousadas e logo se entreolhavam dizendo: “essa não é para o nosso bico! Vamos procurar uma outra!..”
Na verdade, naquela época, o nome pousada nem era usado, falava-se mais em hospedarias...Elas normalmente eram montadas em casas onde salas eram ajeitadas com biombos que separavam camas estreitas sempre barulhentas, com colchões de palha surrados, cobertos por lençóis remendados uma infinidade de vezes...Em algumas delas, existia a oferta de quartos para pouso de viajantes que chegavam trazendo de um tudo, desde pedras para isqueiros, garrafadas milagrosas (para todo tipo de moléstia), cadarços de sapatos, águas de colônia normalmente fedorentas, a panelas de barro, de pedra, de ferro e, mais recentemente, até de alumínio...
Nestas hospedarias havia sempre uma vela num prato esmaltado colocado ao lado do fogão a lenha que permanecia aceso, a qualquer hora do dia ou da noite... Nele sempre tinham dois caldeirões com alça, um maior, com água fervendo, que era multiuso, pois com ele poderia se fazer café, refogar o arroz, tomar banho, aquecer o leite das mamadeiras, fazer escalda pés...O outro caldeirão, um pouco menor, normalmente ficava cheio de feijão a cozinhar...ou que já estivesse cozido e que não era tampado até esfriar...
Naquele tempo, poucas pessoas tinham dinheiro suficiente para adquirir uma geladeira, daí sua raridade nas casas do interior mineiro que eles freqüentavam. No teto destas cozinhas, sobre o fogão a lenha, era comum encontrar uma ripa de bambu ou de madeira dependurada pelas extremidades com um arame ou uma corda improvisada. O artefato funcionava como uma espécie de varal e era coberto com lingüiça feita pela dona da casa. A lingüiça ficava ali dependurada naquele bafo de fumaça, sendo pacientemente defumada às vezes por mais de um mês...tudo bem que isso só acontecia nas casas melhores...naquelas onde o preço era entre 15 e 30 cruzeiros...mas nas de cinco...ao forasteiro que chegasse, quando muito, oferecia-se um prato com farinha de mandioca torrada, feijão inteiro, arroz e providenciava-se um ovo frito.
Os dois amigos já tinham se acostumado com as cozinhas, mas muitas vezes passaram situações engraçadas nos banheiros improvisados, onde faltava água no meio do banho, justamente quando já se estava todo ensaboado, com aqueles sabões caseiros muito pretos, em forma de bola, feitos com banha de porco e soda cáustica, que vinham enrolados em palha de milho ou folha de bananeira e cujo cheiro não era lá dos melhores, mas que, incrivelmente, conseguiam sim, remover aquela capa de poeira que os viajantes traziam nos seus corpos. Muitos foram os banheiros onde a descarga de cordinha se soltou na mão deles na hora do seu uso. E quantas vezes não encontravam absolutamente nada que pudesse ser usado como papel higiênico nos momentos em que ele era tão necessário!
Certa vez, a dupla estava numa casa pequena na cidade de Diamantina. O carro tinha enguiçado mais uma vez, o que não era nenhuma surpresa. A viagem entre Belo Horizonte e Diamantina que deveria demorar sete horas estava completando quase quinze! Eles estavam esgotados e, mesmo assim, começaram a peregrinação em busca de um local para pernoitarem. Depois de muita andança e de entrarem em vários becos e até em alguns bordéis, finalmente encontraram a casa de uma viúva. A pequena sala da casa foi convertida em 3 quartos lado a lado, mas naquela noite, só havia um último disponível e pelo grau de cansaço eles decidiram dividir o quarto, coisa que, aliás, eles já tinham feito inúmeras vezes!
Após comerem um jantar generoso, servido num prato fundo que deveria ter sido branco, com o esmaltado já bem carcomido, agradeceram à dona da casa e se dirigiram ao quarto vago. Jogaram as duas malas marrons pequenas no chão e concluíram que não era uma boa hora para se arriscarem a tomar banho, sendo assim, sacudiram o corpo, passaram as mãos úmidas da bica sob seus rostos e braços. Em seguida, eles retiraram os pijamas e se puseram a dormir. O chefe na cama estreita e o motorista na esteira colocada no chão. Mas eram tantos, mas tantos, os pernilongos, que ainda que estivessem exaustos não conseguiram dormir!
Como se já não bastassem os insetos, havia também um casal em lua de mel no quarto ao lado. Os dois viajantes silenciosamente se perguntavam quem em sã consciência passaria a lua de mel num “muquifo” daqueles e ainda mais, na pequena Diamantina, aparentemente tão sem atrativos... Pergunta impossível de ser respondida! Quando o relógio de bolso do fiscal marcava quatro e meia da madrugada eles já não agüentavam mais aquele casal com seus gritos de ai ai ai...vai vai vai...que já duravam quase meia hora.
Eles se levantaram de seus leitos e desejaram ver de onde vinha tanto entusiasmo! O biombo que separava os quartos era de palha trançada colocado dentro de uma moldura de madeira, um tanto quanto empoeirada. A escuridão não lhes permitia ver muita coisa, mas a curiosidade só fazia aumentar. Noite adentro os gritos do casal continuavam... ai ai ai...vai vai vai...até que o motorista teve uma idéia e disse: “Oh doutor, vamos subir nas nossas malas para expiar? E o fiscal que inicialmente ficou reticente se rendeu à idéia do seu motorista. Como o motorista era menor ele teve direito de subir primeiro...e depois de muito ajeitarem as malas, finalmente foi possível expiar o quarto vizinho. Os olhos do motorista brilhavam, as suas mãos pequenas se entrelaçavam freneticamente...e a curiosidade do fiscal tinha atingido o ponto máximo, quando ele finalmente sussurrou ao motorista: “Vai sô, anda logo, deixa eu dar uma olhada nisso aí...eu quero ver também, ué!!!”
O motorista desceu das malas se segurando no companheiro de quarto sem dizer uma palavra e o fiscal perguntou a ele em voz quase inaudível: “E a senhora, é bonita mesmo? Parece ter um fogo doido! Deve ser muito gostosa para manter seu companheiro tão aceso esse tempo todo! Não estou me agüentando para vê-la...” e o motorista permaneceu calado e apenas maneou com a cabeça, sinalizando com as mãos para ele subir no banco improvisado com as suas malas. Então foi a vez do fiscal aflito para ver o casal, se equilibrar nas maletas e também ele não acreditava no que via... Enquanto subia ele se perguntava: “como podiam fazer aquilo, àquela hora da madrugada?” E os gritos continuavam como antes, no mesmo ai ai ai...vai vai vai... Que fôlego eles tinham, pensava o fiscal! Ele relembrou sua própria lua de mel e, ainda que secretamente, ele já invejava a performance do casal, antes mesmo de poder vê-los, o que só fez aumentar sua curiosidade.
Do outro lado do biombo, uma vela tímida quebrava a escuridão. Não havia nada de corpos juvenis, como tinha mostrado a imaginação do fiscal. Não havia nenhuma camisola vermelha ou meia liga jogada no chão... o que ele viu foi um casal de idosos, muito idosos, com as cabeças branquinhas...e o fiscal fez cara de horror... E eles continuavam a sinfonia ai ai ai...vai vai vai...diante dos seus olhos, até que de repente o senhor falou: “ pronto fia, consegui fechar a mala, agora nois já pode se levantá de cima dela e aí nois esperamo o café antes de nois ir prá cidade grande vê nossas netinha”. A senhora de mais de 80 anos aliviada respondeu: “graças a Deus meu sinhô, meu vestido estava ficando todo amarfanhado de tanto sentar nas quina dela prum modi de vê ela fechá...eta tranca burricida essa sinhô, meió mesmo é nois pedi nossa neta prá comprá uma nova lá no São Paulo!!!”
E assim, motorista e fiscal passaram mais uma noite sem trocar uma só palavra, apenas pensando que realmente as aparências enganam e o que dirá os nossos vizinhos!
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