sexta-feira, 5 de julho de 2013

Discurso oficial de Juscelino Kubitschek no 53º aniversário da Sociedade União Operária Beneficente (1944)

Assistência numerosa e seleta tomou literalmente dia 1º os salões da União Operária, naquele dia comemorando o 53º aniversário de fundação.

Constituída a mesa, tomou a presidência de honra o Sr. Prefeito, Dr. Luiz Kubitschek de Figueiredo. Único sobrevivente dos fundadores, o Sr. Antônio Pádua de Oliveira, a convite, fez parte da mesa.

O Sr. Presidente nomeou a comissão que conduz o orador oficial, Dr. Juscelino Kubitschek à tribuna de honra.

Conferidos os diplomas aos novos sócios, entra o orador oficial a proferir o seu discurso.

Na falta do 1º orador, o Sr. José Joviano de Aguiar é encarregado, em nome da União Operária, a fazer os agradecimentos.

Na palavra franca, o Sr. Dr. Juscelino Kubitschek convida aos presentes para uma reunião naquele mesmo local.

O Senhor Prefeito de Belo Horizonte assim falou:

Aqui estou, velha e gloriosa União Operária, para cantar com as vozes profundas do teu passado, a glória semi-secular de teu presente. Neste mesmo recinto, sob as luzes festivas de uma data igual a esta, há oito anos passados, aqui me encontrava falando-vos como hoje, e como hoje sentindo a tépida atmosfera de nossas virtudes humanas e cristãs. Andava em cheio a campanha eleitoral pela conquista das posições municipais do pleito ferido em 1936. Todos os diamantinenses se empenhavam com calor e sinceridade na luta e com o destemor e dignidade tão fundamentais no caráter de nossa gente. Os grupos se separavam, buscando cada um a fórmula que no seu entender melhor satisfizesse as aspirações naturais de nossa Terra. Naquela noite memorável, que precedeu de uma semana apenas o encontro eleitoral mais disputado dos novos tempos de Diamantina, desta mesma tribuna, dirigia eu a minha palavra aos associados desta grande instituição, numa hora em que, para mim, no exercício do sagrado mandato popular, procurava congregar todos os elementos de minha Terra em torno do Governo Benedito Valadares.

Posso dizer, com prazer e orgulho, senhores, que nenhum homem público guardará nas atividades políticas impressão mais nobre e mais bela do caráter de seu povo do que eu, naqueles tempos que já se vão diluindo na sombra do esquecimento. Efetivamente, nos dois grupos em luta dominava apenas um pensamento: erguer sobre a força imponderável e dominadora de nossas tradições o monumento perene do progresso de Diamantina. Acesa a contenda, jamais se rebaixaram os lutadores a golpes mesquinhos ou menos nobres. E passada a refrega, num gesto de rara elegância e de lúcida superioridade, os adversários se deram a mão, jurando sobre o amor que todos devotam à nossa Terra, que acima dela e contra ele não prevaleceriam incompatibilidades nem ódios inúteis e improdutivos.

E talvez seja esta a única cidade do Brasil em que sobre qualquer outro sentimento predomine o amor à terra-mãe e aos seus altos e definidores rumos cívicos. E prova disto, senhores, é que dentre os acontecimentos espirituais de minha vida, nenhum sobreleva a circunstância tão grata ao meu coração de verificar que posso, fraternalmente, apertar a mão de cada um dos meus conterrâneos, tenham estado eles num ou noutro dos campos em que se dividiu a cidade. Não pode e nem poderá haver mais alta compreensão de deveres cívicos do que esta, e coisas assim só se passariam sob a doçura abençoada do grande céu que se arqueia sobre as lindas paisagens de nossa Terra.

Os diamantinenses são todos irmãos quando se joga no tabuleiro do interesse coletivo os anseios e as aspirações que palpitam, esparsas pelo ambiente da cidade.

E só assim se explica a cordialidade reinante entre todos os seus habitantes, fruto em grande parte do espírito de sua gente que às riquezas excessivas prefere sempre o tranqüilo e romântico deslizar da vida.

Entre a angústia dos que vivem a ambicionar posição e fortuna, na nossa alma cantam apenas singelos poemas de simplicidade e entre o aspecto material e grosseiro da vida, nós empunhamos tranqüilamente a lira e sabemos que pelas ermas horas de silêncio de nossas noites evocadoras o nosso coração e a nossa alma se podem libertar nas asas do sonho para os altos climas a espiritualidade.

Esta festa majestosa e incisiva acorda dentro de mim interrogações surpreendentes. O que era o mundo à época em que um punhado de homens, perdidos nestes rincões longínquos, idealizou e estruturou esta sociedade?

O problema social que a guerra de 1914 focalizou existia, apenas, latente no espírito de um reduzido grupo de predestinados. A humanidade regida por velhas fórmulas, tendo, através de um longo ciclo de vida fácil, esquecido os ensinamentos cristãos, se dividira em castas, da qual a mais humilde e desprezada era exatamente a do operariado. Nobres e burgueses se disputavam a posse do mundo, sob a proteção invencível do dinheiro. O direito era uma lâmina brilhante, porém de um gume apenas. E este se voltava, na maioria das vezes, contra o operário, contra o trabalhador silencioso, que nas horas de amargura de uma existência sempre falhada, ajudava a construir, sem que o reconhecessem, a grandeza e a prosperidade do Universo.

As vozes que ousavam levantar o brado de protesto contra as iniqüidades sociais eram abafadas, e no fundo dos cárceres, às vezes, pagavam a utopia de reivindicar para os que sofrem e lutam as bênçãos e as graças do conforto material e espiritual, privilégio, então de reduzido número de poderosos. Como tem sempre descido do alto das torres de Deus, pela voz sonora dos carrilhões católicos, a palavra de conforto e a imposição para que todos se julgassem iguais através de milênios, pelos púlpitos e pelas naves, pelas estradas e pelos templos, nunca se calou a voz dos herdeiros de Cristo. E se em alguns documentos humanos do valor da Rerum Novarum de Leão XIII, o problema era revelado nas claras luzes de uma solução, silenciosamente pelas cidades, aldeias, arraiais e povoados, onde quer que se ostentasse uma pequena ermida, havia sempre uma voz clamando pela agremiação dos homens, em sentimentos e instituições que lhes garantissem um equilíbrio social e ao mesmo tempo lhes lembrasse que afinal de contas, todos somos iguais e que a diferença social é apenas uma burla de que se servem os poderosos para, oprimindo os humildes, garantirem para si uma situação de domínio.

Esta máscara opressora vai caindo da face dos povos, a medida que o mundo vai se humanizando, começam os homens a sentir que a massa numerosa, densa e sofredora da classe operária precisa vir à tona, e se despindo das vestes sombrias de dores seculares respirar, a plenos pulmões, o mesmo ar cristalino e puro que era reservado apenas a reduzido número de felizes mortais.

Sabemos, porém, o preço dessas conquistas. Sabemos que a pregação cristã abriu o início da picada. Mas para transformá-la em avenida ampla e cheia de luz, milhões de corações cessaram de bater, regando com a púrpura candente de seu sangue, o solo dolorido de velhos e cultos centros civilizados.

Hoje, abrimos ainda um pouco atônitos, os olhos para o quadro desolador que a vida oferecia. E entre os albores que tingem o horizonte já se ouvem as vozes profundas, que anunciam o advento da nova era. E esta será, e a Deus pedimos que assim seja, a realização dos velhos sonhos, acumulados através de milênios de sofrimento.

Queremos que não haja no mundo as inúteis desigualdades sociais e que a todos, operários, intelectuais, industriais seja conferido idêntico direito à vida. Não se pode mais conceber que após labuta longa e sem resultados, o pobre operário, esfalfado e gasto pela peleja, vá somente encontrar num leito de esmola o repouso tão necessário aos seus músculos fatigados. Não se pode mais conceber que a família daqueles que viveram e morreram à sombra do infortúnio, receba como herança de uma vida afanosa, apenas o opróbrio da miséria e da fome, com o cortejo sinistro da desagregação moral que acarreta.

Felizmente, operários de Diamantina, esta época está no fim. Aposentadoria, férias, pensão para a família e justiça social já são uma tranqüila conquista do mundo operário. A sociedade não lhe pode fechar as portas como outrora o fazia e as leis sobre eles estendem, hoje, o manto protetor de seus direitos, tão vivos e sagrados como o dos eminentes nobres da extinta época medieval. No exercício de meu modesto mandato de prefeito de Belo Horizonte, abri algumas largas perspectivas no campo social da cidade que hoje governo.

Hospital Municipal, Restaurante Cidade, Assistência Popular Municipal, Lactários, Beneficência Municipal, Lar dos Meninos, e outras organizações de moldes sociais e humanos ficarão naquela cidade encantadora, como os marcos de uma fase social que mais ninguém poderá deter, e que gravarão na fisionomia palpitante e viva de Belo Horizonte o empenho e o carinho com que o seu prefeito procurou aflorar alguns dos mais graves problemas da hora atual. Tudo isto, porém, senhores, nós o executamos após sentir que nas pulsações o Universo penetrara um novo ritmo. Sobre o nosso espírito e bem dentro do nosso coração, neste século que outra coisa não foi ainda senão um imenso palco de mortes e de guerra, a chama inspiradora, voando de sofrimento em sofrimento, veio bater e iluminar os arcanos profundos de nossa alma, impondo-nos a tarefa e guiando-nos na rota a seguir.

A União Operária de Diamantina, porém, precedeu com uma profética antevisão dos fenômenos sociais, o grande movimento de organização e defesa de sua classe. Sem interrupções, através de decênios, morosa mas seguramente, conseguiu ela congregar o meio operário de Diamantina e dar-lhe a coesão que lhe garantisse relevo acentuado no nosso meio social.

Seguiu, inalteravelmente, a rota primitiva e nunca foi buscar em ideologias revolucionárias ou exóticas o estímulo para as suas conquistas. Modelou-se à sombra de Cristo, de cujos doces ensinamentos brotou a essência miraculosa de sua substância. Os operários que aqui se congregam têm no coração a imagem de Deus e da Família como um dogma moral indestrutível e a sua sobrevivência tão longa e fecunda vem demonstrar que as revelações do mundo de amanhã se devem fazer à luz do socialismo cristão, de modo que as desigualdades sociais desapareçam.

Que a aurora destes acontecimentos ilumine os espíritos como à entrada de Damasco o raio de Deus, penetrando na cegueira de São Paulo, riscou-lhe, para sempre, o rumo da verdade.

Em notável oração pronunciada no Ginásio desta cidade, o eminente reitor, Padre José Pedro, em normas de profunda sabedoria, aconselhava os alunos a não se deixarem dominar pela mentalidade de Creso, isto é, a não julgarem os homens pelo que eles possuem, mas pelo que eles são, acrescentando que nada há mais revoltante do que o cidadão cujo único ideal é ganhar dinheiro, mesmo que isso o leve à exploração do seu semelhante.

É contra esse revoltante materialismo que se erguem as forças cristãs, políticas, proletárias e humanas. O operário é um cidadão a cujo esforço e trabalhos devemos render a homenagem de nosso respeito. Ele é a alavanca do mundo. Isto que a União Operária de Diamantina proclamava há tantos anos penetra, finalmente, na esfera da compreensão do homem. Sois os pioneiros de um profundo movimento renovador. E com que dedicação e modéstia vindes realizando uma das mais fecundas conquistas do coração humano. Nesta cidade, numa noite longínqua de 1891, há mais de meio século passado, descia as escadas de uma residência em festa, sob o peso da humilhação, um operário que a sociedade repudiara, julgando-o de acordo com os cânones da época, indigno de ali penetrar.

À porta, encontra quatro conterrâneos, aos quais expõe a afronta aviltante que recebera. Os quatro se reúnem a mais cinco, que tangidos pelas virtudes profundas e fundamentais do caráter de nossa gente, fundam esta Sociedade, que doravante resguardaria de qualquer agressão, leais e devotados diamantinenses, sob cujos músculos, repousavam a energia construtiva de nossa cidade.

O tempo varreu os caminhos e carregou na poeira do aniquilamento oito destes generosos espíritos diamantinenses.

Um sobreviveu, porém – sob a sua fronte fatigada cantam ainda as aleluias de um espírito viril e forte e de suas mãos que a mística inspiradora da arte transformou em cinzéis atenienses, florescem as claras linhas de relevo que dão a Diamantina a glória de possuir o mais cintilante artista brasileiro, este grande coração que o carinho afetuoso de Diamantina designa por Antoninho de Pádua. Deus o conserve para nós como símbolo e expressão da nobre classe operária de nossa Terra.

Ao receber o vosso convite, transmitido pelo meu dileto amigo Ernesto Roque, em cujo sentimento se acende toda a beleza da generosa boemia de nossa Terra e em cujos cabelos a cor do luar já empresta reflexos de prata, eu vejo se espalharem o encanto e a buliçosa inquietação romântica de nosso temperamento, especialmente voltado para o mundo subjetivo das conquistas espirituais. Glória a vossa organização e louvores aos que a idealizaram e a vem mantendo dentro do espírito rigorosamente social, afastados de competições em que não entre, como tema fundamental, o apoio, a assistência e a elevação moral e social de todos os operários de Diamantina. Trazendo-me até aqui para conviver convosco estes instantes de sadia confraternização, rasgastes para o meu espírito mais uma destas auroras, à luz de cuja claridade eu vejo despontar a indecisa silhueta de velhos tempos, sobretudo daqueles em que por estas vetustas calçadas, eu passava a inexperiência festiva e sonhadora de minha adolescência. Naquelas horas longínquas, embalado na quimera de aspirações, algumas das quais a vida realizou, eu me perdia num mundo misterioso e vago, bebendo, na imaginação policroma dos grandes escritores da época, a seiva fecunda que me modelaria, pela vida afora, as diretrizes fundamentais do espírito mas, e isto não é segredo meu, pois que todos o sabem, os minguados recursos de minha pobre e peregrina mãe, eram insuficientes para me proporcionarem a aquisição de livros em que eu colhesse a linda flor da cultura. Nunca se perderão na minha memória reconhecida os silenciosos e tranqüilos serões que nesta casa eu fazia, recebendo dos velhos livros da modesta biblioteca que aqui mantínheis, as primeiras sementes da reduzida ilustração que vim a conquistar.

Algumas recordações juvenis se infiltram e jamais se apagam no painel de nossa imaginação. Assistindo, há pouco tempo, a exibição do grande filme Ben Hur, subitamente, mergulhei-me num grande sonho, no halo do qual eu me via entrando por uma noite fria e chuvosa na sala sobre a qual estamos e onde em pequenas estantes se alinhavam as lombadas acolhedoras de vossos livros. E foi ali, precisamente, que pela primeira vez pude ler, sob as mais vivas emoções, o delicioso romance que fixaria em minha memória, para sempre, as horas de encantamento que através de vossa modelar organização me foram dadas desfrutar. Não tenho expressões, pois, para vos agradecer. O meu coração é um mosaico colorido, em cada fragmento do qual há uma nota sensibilizadora, fecundada pelo carinho que Diamantina me tem dispensado, eu o mais modesto de seus filhos, porém, eu, o mais apaixonado pela glória de seu passado, pela grandeza de seu nome e pelos esplendores que ainda lhe reserva o futuro.

Fonte:

AHEAD – Jornal A Estrella Polar. Ano XLII. 04/06/1944. nº. 23. p. 01. col. 2-5. / p. 06. col. 4-5.

AHEAD – Arquivo Histórico e Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina.

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