Autor: Júlio Assis no Jornal O Tempo
Os tambores de Bastião, as máscaras de Lira, as cerâmicas de Izabel e Ulisses Mendes, as esculturas de Zefa. Conheci-os todos de uma sentada ao assistir aos DVDs do projeto Saberes Plurais, desenvolvido dentro do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha. Um dos frutos desse projeto é o que está disponível agora pela editora UFMG em pequenos livros dedicados a cada um desses mestres de ofício do Jequitinhonha, incluindo DVD com depoimentos de todos eles com suas imperdíveis histórias.
O tamborzeiro Mestre Antônio Bastião conta como deixou o Jequitinhonha duas vezes para tentar a sorte em São Paulo como oficial de carpintaria até que, em uma das voltas para casa, decidiu que seu destino seria seguir a tradição do Vô Artur em trabalhar com a madeira e o couro nos tambores. “Às vezes a gente põe o pé no lugar errado”, diz Bastião em seu testemunho. Depois ele explica com detalhes como faz o tratamento do couro e da madeira. “Para cada tipo de folia tem tambor com um som diferente, um pra folia de reis, outro para a do divino, outro para a do rosário”, recomenda o mestre. Em dado momento interrompe sua aula para levar a equipe de gravação até o túmulo de pedra que está construindo no terreno de sua casa. “Quero ficar é aqui depois que morrer”, sentencia. E volta pra falar dos tipos de árvores que dão os melhores tambores.
É muito interessante ver a mistura de gerações em torno da arte em cerâmica da Mestra Izabel. O filme dessa artesã inclui os depoimentos dos familiares que herdaram a habilidade com o barro, uma filha e um filho, neta e nora que dão sequência à tradição. Ela começou criança, com o desejo de criar bonecas de barro para brincar, e na adolescência já havia aperfeiçoado sua técnica. Mais tarde se casou, teve cinco filhos que acabou de criar sozinha depois que o marido faleceu. “Fiquei com Deus e meus braços”, conta Mestra Izabel, que narra as dificuldades para vender seu artesanato em postos de gasolina próximos a Araçuaí antes de conseguir seu reconhecimento como artesã.
A difícil realidade do homem do Jequitinhonha é tema recorrente na obra em argila do Mestre Ulisses Mendes, que tem entre suas obras mais conhecidas o Cristo camponês, o homem rural pregado na cruz. “Isso está muito ligado a uma expressão comum aqui, ‘Minha vida é a cruz que eu carrego’”, repete Mestre Ulisses em seu filme. Ele revela também que no início sofreu discriminação por ser homem e dedicar-se a esse trabalho com argila. “Existia uma ideia de que esse era um trabalho feminino, que o homem devia se dedicar à lavoura, mas em determinado momento da minha vida tive certeza de que o que faço é a minha missão na Terra”, encerra ele.
Mestre Zefa é oriunda de família de posses em Sergipe, que perdeu a luta e as terras para a seca e veio parar no Jequitinhonha depois de morar em Teófilo Otoni. Ela narra que antes de ser reconhecida por suas esculturas em madeira chegou a passar fome e tomava água com um pouco de sal para tapear o estômago. “O artesanato é um encontro com Deus, o dom chega, a força divina vai se mostrando”, sintetiza a artesã.
Com Mestre Lira Marques, ex-lavadeira e passadeira que no início dedicava as horas vagas ao artesanato, vem a mescla de uma mulher enraizada em sua cultura e ao mesmo tempo com sede de mais conhecimentos buscados nos livros, com o estímulo do holandês Frei Chico, grande incentivador de artistas populares brasileiros, que também dá seu depoimento no filme. No interesse por suas raízes indígenas e africanas Mestre Lira desenvolveu um estilo muito pessoal de criar suas máscaras de barro.
O projeto Saberes Plurais tem coordenação de Maria Aparecida Moura, Maria das Dores Pimentel Nogueira e Terezinha Maria Furiati. O trabalho que dá voz a esse universo de criadores representa uma das importantes ações em que a universidade vai a campo e interage em diálogo com a comunidade.
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