sábado, 21 de abril de 2012

O homem da janela: Caio Ferro Velho

Fonte: UAI – Revista Ragga

Reportagem de Lara Dias

Jorge Vasconcelos/Esp.EMEscrevo de Diamantina, Minas Gerais. Vim à procura de um homem que só me vem à memória apoiado em uma janela de madeira gasta, de um verde escuro bonito. Nenhuma outra informação. Perguntei  para um sujeito sentado na calçada, e ele se lembrou sem dificuldade: "Esse é o Caio Ferro Velho. Já faleceu. Agora quem fica na janela é a mulher dele”. A notícia me atingiu com força, atravessando a minha ansiedade, sem dó, depois de trezentos e poucos quilômetros de viagem. Mas eu sempre soube que ninguém retorna de um destino com as malas menos cheias do que quando partiu. Fui até a casa onde, de acordo com quem encontrei pelas ruas e becos, o homem havia morado. Bati na porta duas vezes e, antes da terceira, uma senhora abriu e me mandou entrar, com um sorriso largo no rosto. Ela não sabia quem eu era e nem de onde eu vinha. Mas acho que ter batido à sua porta já fazia de mim uma pessoa bem-vinda.

Entramos por um corredor estreito e sentamos no mesmo sofá de onde eu vi o homem tantas vezes, apoiando os cotovelos no peitoral da janela. Dona Stael Paula Rego de Oliveira foi casada por 46 anos com Caio de Oliveira Rocha, o Caio Ferro Velho. Ou, o homem da janela. Hoje, senta-se ali e não esconde no olhar a saudade do marido: “Ele foi um homem muito carinhoso. E muito atento. Aquele era o retrato preferido dele” [e aponta para a parede, onde uma pintura a óleo exibe as feições elegantes de um Caio de trinta e poucos anos].

A Rua do Amparo, onde fica a casa, é tipicamente diamantinense: uma ladeira de pedras largas e mal dispostas, que entortam o andar de qualquer dama equilibrista. Qualquer um se lembra do homem sempre debruçado no parapeito, usando um chapéu na cabeça e quase sempre com um cigarro escorado entre os dedos. Caio passava uma tarde inteira fazendo social com os amigos que, religiosamente, paravam em frente à casa para ouvir alguma piada ou a última notícia (sempre bem-informado e atento ao rádio de pilha, ele sabia contar o que acontecia por cada canto do mundo). Já os jovens paravam ali em busca de algum conselho.

Nessa história, porém, se engana quem pensa que Caio viveu  assim: vendo a vida passar pelo vão de sua janela e observando a calmaria interiorana. Depois de trabalhar duro na mineração e viajar o país transportando ferro velho (por isso o apelido que o deixou popular na cidade), ele se aposentou. Mas “O Rei da Sucata”, como também fora lembrado por um de seus grandes amigos, foi, na verdade, um homem alegre e muito festeiro.

Infelizmente, o cigarro, seu ingrato companheiro, lhe trouxe problemas de saúde que se complicaram, obrigando-o a amputar uma perna. Ainda assim, ele seguiu distribuindo “bom dias” e sorrisos para quem passasse ali. Sua filha, Lalá, tem certeza: “A janela foi uma terapia pra ele. Foi isso o que não o levou a ter depressão. Ficar ali era uma forma de alívio, de ter contato com os amigos, de rir. Graças ao meu pai, janela significa, para mim, vida”, conta.

Andando por algum beco da cidade, pensei nos ensinamentos deixados por [José] Saramago, sobre a janela da alma: os olhos. Pensei em como, por vezes, o mundo parece viver de uma cegueira generalizada, como se fôssemos tão cegos a ponto de também não sabermos ouvir. E a última informação que tive sobre Caio é de que ele viveu os últimos quatro ou cinco anos de sua vida sem enxergar quase nada. Muitos nem tinham conhecimento do fato. Outros até duvidam, alegando que ele sempre os cumprimentara pelo nome e que, por isso, não era possível ele estar cego. Pois bem, do mesmo sorriso, da mesma janela, viveu um homem capaz de observar o silêncio e de enxergar a beleza com ouvidos atentos.

DO OUTRO LADO DA JANELA

Depoimentos de quem passava pela Rua do Amparo e nunca se esqueceu do retrato de um homem de sorrisos e notícias.

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