Fonte: O Globo (clique aqui)
A História é sempre contada pelos vencedores. Para contrabalançar a incontestável verdade, exaustivamente repetida na forma de clichê, historiadores querem dar voz aos vencidos e também aos completamente esquecidos desde o Brasil Colônia até a ditadura militar. Este, ao menos, é o foco do Segundo Festival de História de Diamantina, que acontece em setembro, na cidade histórica mineira, reunindo especialistas de todo o país.
— A História é contada pelos vencedores sim. Nas escolas, as crianças aprendem a disciplina do ponto de vista de quem venceu. E, além disso, existe uma grande parte dela que, simplesmente, não é pesquisada ou revelada — afirma a curadora do festival, Pilar Lacerda, do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). — Nas reuniões que a gente tem feito para organizar o festival, começamos a descobrir muitas pesquisas e trabalhos sobre movimentos, rebeliões e pessoas que não foram muito explorados; episódios que não foram contados ou que não tiveram o destaque merecido. Este é um momento especial para recuperá-los.
Para a especialista, os grandes derrotados da História do Brasil são os índios e os negros. A historiografia tradicional é toda baseada no ponto de vista europeu, não dos indígenas, nem dos negros que vieram da África. De acordo com os números mais aceitos hoje, em 1500, quando Pedro Álvares Cabral chegou por aqui, havia algo entre 2,5 milhões e 6 milhões de índios. Pelo último Censo, sua população atual é de 897 mil pessoas — embora já tenha sido menos ainda, 250 mil, em 1997. Os navios negreiros, por sua vez, deixaram em terras brasileiras aproximadamente 6 milhões de indivíduos.
— Ainda assim, a abordagem da História que a gente tem é muito europeizada, ela é contada sempre a partir do movimento dos europeus, de como eles vieram para cá, de como como nos dominaram — sustenta Pilar. — Evidentemente isso é importante, mas não podemos nos limitar.
Abordagens equivocadas e erradas
Obviamente a escravidão e o tráfico negreiro são abordados nos livros de História, mas, segundo a especialista, de forma breve e superficial.
— Me lembro de quando passei o filme “Amistad”, de Steven Spielberg, para os meus alunos, a maioria deles negros; todos ficaram atônitos. Havia um desconhecimento muito grande da trajetória de seus antepassados. O tema é falado nas escolas, mas normalmente não é aprofundado — afirma Pilar. — Seria importante mostrar que eles foram arrancados de suas culturas, de civilizações. Que não eram pessoas brutas, ignorantes, que se não tivessem vindo para cá teriam morrido. E há outras abordagens possíveis. A música, por exemplo. O samba explica a história do povo negro, urbano, marginalizado nas grandes cidades. Até porque o fim da escravidão não promoveu a inserção. Isso, sem dúvida, melhoraria o entendimento da História do Brasil.
Em relação aos indígenas, a situação é ainda pior, na análise da historiadora. Retratado ora como selvagem, ora como uma figura ingênua, os índios foram exterminados aos milhares pelas armas dos colonizadores ou por suas doenças. Pior do que isso, como revelaram documentos recentes, foram tratados com crueldade durante a ditadura militar.
— A história dos índios não é contada de forma equivocada, mas de maneira totalmente errada mesmo — garante a historiadora. — A abordagem varia muito, mas eles nunca aparecem como protagonistas. São seres mais fracos, mais bonzinhos, mais ingênuos. No caso do Brasil, trabalhou-se muito a ideia de que não resistiram (à dominação), de que lidaram bem como o branco europeu.
Os índios e os negros não serão os únicos “vencidos” da História do Brasil a ganhar voz no Festival de Diamantina, entre os dias 19 e 22 de setembro.
— Outros vencidos da nossa História são parte da população pobre que tentou se rebelar sem estar aliada a setores dominantes — enumera a curadora do festival. — Revoltas coloniais foram duramente reprimidas e acabaram tendo pouca visibilidade porque não representavam oligarquias ou classes dominantes. Nossa ideia é mostrar não só necessariamente o vencido, mas também aqueles que não tiveram muita visibilidade, dificultando nossa interpretação e entendimento de diversos momentos da História do Brasil.
Filmes, livros e música
Nos moldes da Festa Literária de Paraty (Flip), o Festival de História tem como uma de suas principais características as mesas-redondas e debates abertos à participação do público. Sob o tema “Histórias não contadas”, serão realizadas 14 discussões e apresentações de novos trabalhos sobre resistência indígena, legado dos jesuítas, escravidão, rebeliões coloniais e ditadura militar. Estão previstos ainda oficinas, exibição de filmes, espetáculos musicais e lançamento de livros. Para os organizadores, a História não é contada apenas por historiadores.
— São olhares diferentes que se complementam. Nem o historiador, nem o jornalista, nem o cineasta são capazes de fazer bons trabalhos sem uma pesquisa séria, aprofundada. Então há uma base comum, que são horas e horas de pesquisa — diz Pilar. — Mas a abordagem é diferente, a linguagem do cinema é diferente da linguagem acadêmica. E a leitura também é diferente, se o autor é um acadêmico ou um jornalista. Do ponto de vista do registro histórico, são todos igualmente importantes. E acho que é muito rico que tenhamos essa diversidade.
O tema deste ano surgiu por conta do trabalho que vem sendo feito pela Comissão da Verdade, ao revelar histórias da ditadura militar.
— Esse momento que o Brasil vive de rever a ditadura nos entusiasmou — explicou. — A gente acha que um festival tem a obrigação de trazer novas abordagens, não adianta ser mais do mesmo. A gente quer mais do que é inédito, do que foi silenciado.
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