terça-feira, 22 de novembro de 2011

O senhor Martini

Autora: Adriana Netto Parentoni Parentoni

Ela tinha acabado de passar num concurso, depois de um caminho bem longo, suado e, ainda assim, ela continuava sem saber ao certo o que fazer, coisa normal para ela, que mesmo depois dos 40 anos continuava sem ter muitas respostas para as questões existenciais. Especialmente naquela noite, depois de uma semana de provas escritas e orais ela foi convidada para ir num mercado da cidade naquela sexta-feira, para comemorar a sua conquista, afinal, foram muitos os candidatos a uma única vaga e como ela não conhecia ninguém na cidade, a não ser as pessoas da sua banca de concurso, achou melhor aceitar.

O mercado velho tinha um charme todo especial, com seu piso e telhados de madeira bem antiga. Ela sempre adorou madeiras e coisas antigas, não era por acaso que trabalhava com idosos desde a sua graduação! As bancadas usadas na feira que acontecia religiosamente aos sábados naquele mesmo mercado, estavam amontoadas no fundo do pavilhão e os conjuntos de quatro cadeiras e mesa foram delicadamente espalhados por todo o salão por garçons locais.

Ali mesmo, estranhamente, as pessoas da cidade se serviam comprando a cerveja num balcão atrás das mesas e as comidas nas barraquinhas que ficavam logo em frente, mesmo com a presença dos garçons. Tudo era muito simples e para ela muito diferente, ainda que estranhamente familiar. Fazia muito frio naquela noite e ela, friorenta que era, abria a bolsa para tirar suas luvas, apertava o cachecol junto ao pescoço e fechava ainda mais o casaco, quando no meio desta quase operação de guerra, apareceu o que poderia ser chamado assim, de um tipo local. Ele se sentou com ela na mesa, antes mesmo que ela pudesse ter alguma reação.

“Boa noite”, disse ele, com seu cabelo encaracolado e meio grisalho, vestindo uma camisa jeans surrada com o peito aberto, para que pudesse ser vista uma corrente de prata trançada bem grossa e com um casaco de motoqueiro preto já gasto, dependurado no ombro esquerdo e um cigarro aceso na mão direita. Bem se via que ele não estava sentindo aquele frio todo... “Posso me sentar aqui com você?” Pediu o moço, mas quando já estava assentando!!! Como as supostas anfitriãs tinham saído para pegar as cervejas para o brinde de boas vindas, ela se viu sozinha com o sujeito aparentemente estranho e achou melhor não criar problemas, assentindo com a cabeça para ele se sentar, ou melhor, para ele se manter assentado!

Pois é, começou ele dizendo, “sou redator da única revista boa desse lugar...vejo que você é nova aqui...o que faz?”...e ela muito sem graça, “pensou que se não lhe desse papo seria indelicada mas, por outro lado, se lhe desse atenção, nunca mais se veria livre da tal figura...” e assim, num milésimo de segundo, que para ela pareceu ser uma eternidade, ela disse: “Não, por favor pode ficar, sem problemas! E emendou dizendo, como faz frio nesse lugar!!!” Ele soltando mais uma baforada de cigarro, que ela simplesmente detestava lhe falou... “Frio? Você não viu nada, para sentir frio aqui tem que vir em julho!!!” E entre uma tragada e outra ele prosseguiu dizendo... “Olha moça, te observei desde que você entrou aqui e te achei uma pessoa bonita e simpática, vejo que não tem aliança no dedo, então não devo apanhar de ninguém por estar aqui, mas tenho que te dizer uma coisa muito séria.” Nisso ela já começava a pensar: “ai meu Deus estou diante de um louco varrido!!!” E nada das outras professoras voltarem...E ele prosseguiu: “Olha, já que você não é daqui e acaba de chegar, se quiser ficar aqui tem que aprender um grande segredo...só eu posso te ajudar nisso...” e ela pensava: “ minha nossa! Será que eu mereço uma companhia dessa depois de passar uma semana em claro??? Porque minha cerveja nunca chega? Precisava tanto de uma!”

Depois de aparente século para a pobre moça, as professoras chegaram à mesa trazendo as cervejas. O homem se levantou para pegar uma, pois também ele queria participar do brinde, embora nada soubesse a respeito da moça. E como aparentemente fosse conhecido das professoras do lugar, seu retorno foi aguardado para o brinde. Quando ele voltou, as professoras lhe disseram: “ que bom você que está com Martinni, assim ele vai te apresentar a cidade, ele é a melhor pessoa para fazer isso.” Ela ficou sem ação, só viu as professoras se afastando dirigindo-se para as mesas de outras pessoas que estavam no mercado e secretamente pensava, “quem será que este cara era? Seria mesmo Martinni o seu nome ou isso era apenas seu apelido???Seria ele um bêbado da cidade, um motoqueiro louco com sua motoca amarela bem cheguei, ou simplesmente uma pessoa extremamente inteligente, envolvente e sedutora?” Mas ela não conseguiu ter certeza de nada, exceto que queria permanecer ali na companhia dele, por mais maluquice que isso fosse.

Estavam os dois assentados e conversando amenidades, quando Martinni lhe falou: “Olha moça, não preciso saber o seu nome para saber de toda a sua história.” Ela lhe ouvia ainda um tanto quanto assustada, sem conseguir entender muita coisa que ele dizia, ou pensava dizer... “ela achava que se tratava de um doidão mesmo e pensava que todos aprenderam a respeitá-lo e a gostar dele, pois ele era uma figura super interessante...”

A noite prosseguiu animadíssima e os dois fizeram mais um sem número de brindes, pegando cada hora um, as duas latinhas de cerveja no balcão de trás da mesa onde estavam. E falaram de tudo, mas tudo mesmo! Falaram de política à culinária... e ela adorava cozinhar. Ele lhe revelou que faria um grande almoço beneficente naquele ano, o que deixou a moça ainda mais intrigada com aquela figura, já super interessante para ela. Mas certa hora, ele prosseguiu dizendo: “nesta cidade existe uma lei não escrita, você, como minha mais nova amiga, precisa saber...” “Ai meu Deus, ele é maluco mesmo, ela pensava, me enganei achando que fosse normal!!!” Mas ele prosseguiu acendendo novo cigarro, depois de nem sei quantos e continuou a dizer: “aqui é o seguinte, ou você conta a sua história com muitos detalhes ou alguém vai inventar uma para você!” Ela já menos retraída, lhe perguntou: “por que isso Martinni? Minha vida aqui não diz respeito a ninguém! Mal acabo de chegar...nem sei direito se fico!!!”E ele prontamente retrucou, “diz sim amiga e você um dia vai me entender...”

Muitos meses depois ela se encontrou com ele na praça da cidade, na frente do banco e ele novamente lhe fez algumas perguntas. A primeira é “se ela topava lhe ajudar na sua feijoada”, pedido que, inclusive, foi prontamente aceito, “ainda que ela pensasse que ele era maluco pelo menos em parte, por fazer uma feijoada para mais de 200 pessoas, por conta própria, em fogão a lenha!” A segunda era “ se ela já tinha contado a sua história” e ela respondeu-lhe com um largo sorriso “que não, ainda não...” Ele finalmente lhe disse: “Se não contar a verdadeira ou mesmo criar uma, mesmo que ela não exista, outros a criarão, por isso é melhor que você crie do seu jeito, do que viver aqui uma história que não é sua...” Ela o abraçou e se despediu do seu amigo, agradecendo-lhe o convite para participar da sua cozinha e da sua feijoada, que depois ela ficou sabendo que era muito famosa em toda a cidade.

Certo dia, ela viu num site de um amigo, que o Martinni tinha sofrido um ataque cardíaco. Ela quis saber mais e por isso procurou seu amigo Fernando, dono do site, e ele lhe mostrou uma folha da revista do Martinni... “Sim, era verdade, ele realmente editava e redigia uma revista. Ela custou a crer, mas lá na revista ele se desculpava por ter fugido do hospital... Ela ficou imóvel ao ler o artigo, pensou em como tinha conhecido Martinni e secretamente quis ter a chance de lhe ver de novo, pois também ela tinha pavor de hospital e certa vez, também havia fugido de um.” Naquele mesmo dia ela o viu passar na inconfundível motoca amarela, algumas vezes pelo centro da cidade, mas sempre com o cigarro na boca, o sorriso no rosto queimado de sol e algumas sacolas nos braços... numa pressa que só quem quer viver tem..., mas ela não falou sua história para ele...

Martinni não só se deu alta hospitalar, mas não seguiu nenhuma das orientações e restrições dos médicos, ele era uma pessoa verdadeiramente livre. Num belo dia, numa festa dos novos amigos que ela tinha feito, na casa do Fernando, a moça soube que ele tinha morrido. Ela já tinha bebido muito quando ouviu alguém fazer um brinde ao nosso amigo Martinni que se foi. Se num primeiro momento seu semblante foi de extrema tristeza e seus olhos ficaram marejados, num segundo momento ela pensou, “sim, ele realmente fez não só a sua vida, mas também a sua história, uma história incrível de alguém sensacional.”

A partir daquele instante ela realmente começou a pensar “em qual história ela queria contar afinal, o que valeria mais, a sua história ou a que criariam para ela? Deveria levar uma vida comum, sem encontros ou despedidas, sem altos e baixos, sem excessos, sem prazeres... sem tantos deveres ou amores?...Valeria realmente à pena estar ali sem um sonho...sem uma história para escrever...sem um segredo para revelar??? Valeria à pena passar por este lugar sem uma panela onde cozinhar com os temperos da diversidade ou um grande e inusitado amigo para levar no peito e lhe ajudar a mexer as panelas, a abrir as tampas do coração? Será que fazer a própria história não seria um jeito de ser verdadeiramente feliz? Teria sido mesmo isso, que ao seu modo ele sempre lhe disse???”

Dri Para Martinni com todo carinho 2010

Um comentário:

  1. Que beleza de texto! É uma mistura de aventura, suspense e romance tipo água com açúcar... Tive vontade de conhecer o tal Martinni. Gosto de gente como ele, despojado, porra louca, livre. Apesar de não ter tido outra opção,deve ter sido um privilégio para ela estar com ele. E apesar dele ter "subido", considero que houve um final feliz, porque ele conseguiu angariar dela simpatia e respeito e ela conseguiu passar o mesmo sentimento para quem leu este artigo. Parabéns.

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