Fonte: Júnia Ferreira Furtado, trecho tirado da Revista História
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Salva do terremoto de Lisboa, beata credita milagre a Nossa Senhora da Luz e cruza o oceano com a imagem da santa, erguendo igreja em Diamantina
Thereza, seu marido e a santa chegaram ao Tejuco na década de 1780. O núcleo urbano florescente já vivia uma economia pujante e contava com mais de 500 casas, bastante para o padrão da época. À imagem de Lisboa, também no arraial o mundo religioso se espraiava pelas ruas. No centro, a Matriz de Santo Antônio abrigava a irmandade do Santíssimo Sacramento, que congregava as pessoas mais importantes, e a das Almas, muito procurada pelo papel central de São Miguel na boa condução das almas do purgatório. Em seu entorno, as igrejas proliferaram ao longo de todo o século XVIII, com suas irmandades refletindo a diversidade social. A Igreja do Rosário abrigava os negros; a do Amparo e a das Mercês, os forros; a de São Francisco e a do Carmo disputavam entre si os corpos e as almas da elite. Foi em meio a essa profusão de santos que Thereza de Jesus resolveu encontrar abrigo para a imagem milagrosa que a acompanhava desde o dia do terremoto lisboeta. Inicialmente, a imagem foi colocada em um altar na Igreja do Amparo, depois ela escolheu pessoalmente um sítio aprazível nos subúrbios do arraial, na parte alta da Serra de Santo Antônio, para construir uma pequena igreja.
Embora não lhe faltassem dinheiro e determinação, a beata precisava resolver trâmites burocráticos para pôr em prática o seu projeto. Em 1802, encaminhou a Lisboa uma petição, intermediada pelo Conselho Ultramarino, pedindo permissão para fazer funcionar a sua igreja. No documento, afirmava que tinha “uma particular devoção com a Virgem Santíssima, como mãe e protetora dos pecadores”. Aceita a proposta, partiu para a empreitada, iniciada no ano seguinte. A obra arrastou-se por 16 anos, consumindo parte considerável do patrimônio da devota. A imagem só foi colocada no altar-mor quando a capela foi concluída, em 1819. Junto à igrejinha, Thereza também instalou um pequeno recolhimento para dar auxílio a órfãs que se casavam: elas recebiam enxoval completo, um faqueiro de prata e um dote de três mil cruzados.
Se o trauma do terremoto e a intensa devoção à Virgem salvadora já haviam influenciado profundamente o comportamento de Thereza de Jesus, depois que ficou viúva ela deve ter passado a se dedicar integralmente ao sentimento religioso. Além de empreender grande esforço para cumprir sua promessa, expressava sua devoção em um estilo de vida extremamente modesto. Sua casa tinha pouquíssima mobília. Como não tinha cama, é provável que dormisse no chão, em uma esteira. Os itens do enxoval contavam-se nos dedos: dois lençóis, duas cobertas e uma toalha de mesa. No armário, apenas duas camisas de bretanha e um vestido de cetim preto – veste de viúva. Sua mesa também não devia ser farta, pois os utensílios de cozinha eram poucos e rústicos. Apesar de viver sozinha, por vezes devia receber alguns convidados, dispondo para isso de nove pratos de pedra, seis xícaras e dez canecas. Tinha ainda uma chocolateira, para servir a iguaria muito apreciada na época – provavelmente destinada somente aos convivas, pois, para a beata, a frugalidade caía melhor.
Fato inusitado para a época, Thereza não possuía um único escravo, o que é revelador da vida simples que levava, de seu espírito caridoso, de sua verdadeira conversão espiritual. A palmatória, normalmente usada para aplicar disciplina aos cativos ou às crianças, era provavelmente usada para seu autoflagelo. Na falta de escravos para ajudá-la nas tarefas do dia a dia, é provável que se ocupasse sozinha dos serviços de casa, o que justificaria possuir dois aventais grosseiros.
Os hábitos monásticos eram fruto de escolha pessoal, pois ela tinha recursos suficientes para usufruir de muito mais conforto. Participava de uma sociedade que fazia o comércio de alimentos e de fazenda seca importada (como tecidos e chapéus), e deixaria significativa herança para seu sócio, o capitão João Baptista da Fonseca: 6:857$148 réis (seis contos, oitocentos e cinquenta e sete mil, cento e quarenta e oito réis). Além disso, dispunha de mais de 20 contos em dinheiro e bilhetes da Real Extração dos Diamantes, que deve ter recebido como pagamento pelo fornecimento de víveres aos escravos contratados por essa Companhia Régia, que monopolizava a extração das pedras. Esses bens parecem ter se destinado essencialmente à caridade.
Thereza de Jesus Perpétua morreu no Tejuco em 13 de julho de 1827, sem filhos ou qualquer parente vivo. Parece que já era inválida, pois entre seus bens figurava uma cadeira de rodas, ainda que quebrada. Apesar de ter pedido em testamento que fosse enterrada na Igreja Matriz de Santo Antônio, reza a tradição que seu corpo foi sepultado sob o coro de sua Igreja da Luz , onde ainda hoje reina a estátua milagrosa de Nossa Senhora.
Júnia Ferreira Furtado é professora da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Chica da Silva e o contratador de diamantes (Companhia das Letras, 2003).
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