Dois textos bacanas de Junia Mortimer, no interessante Coletivo Pegada
A cidade da solidão, do desespero e do esquecimento - Diamantina, Julho de 2005
Diamantina já tem olhos demais para nos iludirmos com a originalidade de nossas visadas! Acreditamos que esses olhares, mais que cenário, compõem uma tragédia maior: eles observam nosso passado, nossas certezas, nossos feitos e palavras, nossas esperanças visionárias, mas não passivamente. Inquirimo-nos sobre passado, certezas e esperanças nossas, que os olhos das cidades observaram, colocando-nos em perspectiva com o mundo, em relação com o outro. Analisamo-nos? Talvez além, ou aquém: avaliamo-nos. Não sozinhos, mas sempre em relação a: perspectivados, comparados. Por isso, não termos dito que o dentro para o qual essa cidade nos lança ser a pura subjetivação. Avaliar nossos atos e palavras é avaliarmo-nos no mundo público, onde as coisas devem ser perspectivadas, comparadas, colocadas em relação, para que exista o comum, e não o tirânico. A interioridade não é o fim da rota: é parte do caminho no qual Diamantina nos joga; caminho que leva à vida de suas ruas, à folia de seus becos, ao burburinho de suas esquinas.
Sertão perscrutando a cidade, existindo nela e fazendo-se condição de sua singularidade. Os vazios de Diamantina são as esquinas em que esse movimento de subjetivação encontra a realidade. Realidade conduzindo ao imaginário, imaginário conduzindo à realidade… sobretudo, realidade e imaginário dividindo princípios comuns; crenças, mitos e verdades comuns. Como cantado na esquina da utopia inventiva do Clube da Esquina com as ruelas do beco do Mota. São as esquinas da solidão. Não do isolamento, de onde o próprio exemplo do beco do Mota se distancia. A cidade observa-nos e impele-nos a ir em direção a nossas certezas, pautando nosso deslocamento com as margens da imaginação e da realidade, sendo que somente as águas do rio podem tocar as duas margens. Essa travessia de um “sertão que é dentro da gente” (Rosa) “ninguém pode fazê-lo em nosso lugar” (Comte-Sponville). Por isso são esquinas da solidão, e não do isolamento: porque as vivenciamos sozinhos, no sentido de que outro não poderia vivenciá-las por nós. Porque sozinhos é que nos lançamos na travessia de nós mesmos, pautando-nos no imaginário e na realidade, na invenção e no mundo público, e podemos ser úteis. Diamantina tem humanidade nos seus estreitos vazios (porque vazio largo é deserto, e não sertão!), nas suas permeabilidades que permitem as esquinas entre a realidade e o imaginário, seja no recatado muxarabi, seja no enquadramento do passadiço da Casa da Glória: são espaços e elementos da cidade que nos observam, alçando-nos no vôo de novos olhares sobre nós e o mundo, sobre nossa atuação no mundo.
Para tanta coragem e ação – o sertão é para poucos e encarar nosso próprio nada é correr o risco de um afogamento narcísico – Diamantina é também a cidade da desesperança. A cidade do desespero. Ao nos observar, ao lançar sobre nós os olhos que observam como somos, fazendo-nos inquirir sobre como deveríamos ser, Diamantina nos joga na esfera da ação: imaginar somente não permitiria a realização de potencialidades humanas, como a ação sem imagem (é preciso pensar por imagens!) seria o exercício da massa, não de cidadãos, não de todos-uns (Abensour) em torno de objetivos comuns, mas de um todos-um, manipulados pela tirania da ação não imaginante. É agindo que podemos chegar ao fim, à felicidade, pautando-nos pela norma, que é a verdade (Comte-Sponville): esperar é perder-se sem se lançar à procura do encontro; ver o desespero e não admiti-lo ou não encará-lo. Por isso a esperança é mais corrupção que virtude: ela imobiliza a ação. É preciso des-esperar, e Diamantina habita esse desespero, essa desesperança, porque, observando-nos, dirige-nos no sentido de nos avaliarmos frente à felicidade que buscamos como fim: “Foram bons o suficiente?”, (Dogville). Uma felicidade que só se realiza no mundo público, porque a humanidade do homem depende do outro, depende de outros para os movimentos de conhecimento e reconhecimento.
Pelos olhos do paredão rochoso, das janelas abertas, dos deuses calvinianos de Lares e Penates, nossa cidade faz-se cidade do esquecimento, terceira característica com a qual tentaremos arrematar o esboço do olhar que Diamantina nos trabalha a formar, mais cuidadoso que as imagens queimadas em nossas retinas burocratizadas. Cidade do esquecimento, porque esquecer é também selecionar. Coleta seletiva para escolher os materiais que vão compor essa rede de linhas e ausências que é a memória: o que se preserva de Diamantina que é aquilo que queremos prospectar no futuro? As torres das igrejas? O paredão rochoso? As intervenções modernistas? A descaracterização de muitas arquiteturas residenciais? E cidade do esquecimento também porque o buraco da memória nos aproxima da própria memória: linhas e ausências. Se a memória é essa origem cada vez mais distante, o esquecimento abriga em si um movimento contrário: ele nos aproxima da origem, suprimindo a distância entre a palavra e a coisa, entre res e verba. Porque são pelas frestras de esquecimento que sopra o frescor de novos olhares, afastando as poeiras que empedram os corpos: esquecer nos permite lembrar, e lembrar por outro ângulo, outra visada, outro viés. Diamantina nos lança nas origens: origens de nossas certezas, de nossas incertezas. Por ela corre esse vento frescoroso de novos olhares. O vento que, conduzidos à solidão e ao desespero pelos olhos da cidade, nos sopra impulsos em outros feitos e palavras, nos sopra à ação, antes imobilizada pela esperança. Mas é preciso estar atento. É vento assim miúdo; brisa fraca, que vem quase só que na soleira, murmurando baixo entre as escarpas da terra e do corpo: silêncio!
Caixinha de música - Diamantina, Julho de 2011
Não que hoje eu discorde da solidão, do desespero e do esquecimento, conceitos que trabalhei no texto de seis anos atrás, mas agora Diamantina me é outra. Ela se apresenta a mim, porque assim eu me apresento a ela, um pouco menos melancólica e um tanto mais despretensiosa. Talvez tanto mais suave e alegre, quanto menos eu carregue meu olhar, aqui viajante e estrangeiro, de um fino pessimismo com relação ao futuro, sobretudo ao futuro das cidades. E não há planos mirabolantes nem mega-projetos por trás desse desvelar os olhos da muita melancolia. Apenas a militância pela educação e pela cultura é que me tem descoberto esses mesmos olhos da turva membrana do pessimismo, mas não para cobri-los com outra membrana, igualmente turva, que seria aquela da esperança. De olhos nus apenas, tenho me lançado em ações cotidianas de construção, seja na sala de aula, seja nas experimentações radiofônicas, fotográficas e literárias dos últimos tempos: construção de mim e do outro, construção de um espaço para o diálogo, construção da cidade. É nessa mesma direção que Diamantina tem sido uma caixinha com a qual Bruno e eu temos brincado bastante. Não caixa de Pandora, guardando os grandes males da humanidade, mas uma simples caixinha de música, cuja melodia se altera a cada novo rodar das cordas, com boas e simples surpresas: encontros, desencontros, reencontros. Nossa oficina, intitulada “Diamantina Imaginária”, tem se beneficiado da participação excelente dos inscritos – Renata Allessandra, Roberto Uber, Pollyanna Ramalho, Stefânia Batista, Maria Regina Ramos, Mariana Silva, Tales Arthur, Márcia Nascimento, Ariadna Santos – e está abrigada dentro da área de “Artes Literárias”, sob coordenação da muito querida Lucia Castello Branco. É junto desses participantes que temos reconstruído o antigo Arraial do Tejuco a partir de um cruzamento de mitos e imagens, de histórias e lendas, de arquitetura e construção. Com as pedras fornecidas pelo material histórico e pela herança arquitetônica, é a muita argamassa onírica das entrevistas – como aquela com Vó Dina, a mais antiga das comerciantes do mercado l – que tem permitido reiluminar Diamantina, reapresentá-la a nós mesmos. Pretendemos, por meio desse processo, também reapresentar essa cidade para seus próprios cidadãos e para os ouvintes da rádio educativa UFMG (104,5), que poderão desfrutar do percurso dimantinense que temos construído durante a oficina no programa “Um lugar ao som”, edição especial “Diamantina Imaginária”. O programa irá ao ar em breve, e por aqui darei mais notícias dele. Por enquanto, continuamos por cá, essa equipe de estrangeiros que ora se perde, ora se encontra, e que acaba as noites neste beco que é Diamantina, que é Minas, que é Brasil: Beco do Mota, “Viva meu país!”
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