A história de Anísio Santiago é interessante sob todos os aspectos. Em vida foi respeitado e admirado pela cachaça que produzia: a Havana/Anísio Santiago. Mesmo após sua morte em 2002, o seu legado continua. Pode-se afirmar que a história da cachaça de Salinas e mineira refere-se a antes e depois de Anísio Santiago
Por Roberto Carlos Morais Santiago
A família Santiago surgiu no município norte-mineiro de Salinas no ano de 1898, século XIX, através do pioneiro José Santiago (1877-1944). Filho de Justino Santiago e Anna Maria de Jesus, nasceu na cidade mineira de Diamantina, no Alto Jequitinhonha.
Ainda jovem, em 1894, José Santiago foi estudar medicina em Salvador. Por razões desconhecidas desistiu do curso no segundo ano. Segundo Arlindo Santiago (1909), filho de José Santiago, o motivo da desistência foi a Guerra de Canudos (1896-1897), ocorrida no interior da Bahia, que mobilizou milhares de soldados do governo federal da República para combater o temido Antônio Conselheiro. Em dois anos de conflito milhares de pessoas morreram.
Retornando para Minas Gerais, José Santiago foi morar e trabalhar como professor na cidade de Medina, no Vale do Jequitinhonha. Ali conheceu a baiana Virginia Celestina (1882-1965), natural de Urandi, com quem se casou em 1896.
Em 1898, mudou-se com a esposa para Salinas exercendo ainda a profissão de professor como fazia em Medina. Dois anos depois foi lecionar no povoado de Lagoinha, interior do município. O povoado, naquela época, tinha importância estratégica tendo em vista que era parada obrigatória de pessoas e transportadores de mercadorias em mulas entre Salinas e Montes Claros. Em 1903 adquiriu a fazenda Bonfim, próxima ao povoado, onde fixou moradia, tornando-se produtor rural, além de professor. José Santiago tornou-se pessoa muito assediada na região pelo fato de ter conhecimento de medicina, além de ser professor. Em pouco tempo tornou-se uma espécie de líder do povoado de Lagoinha e região.
Da união de José Santiago e Virginia Celestina surgiu prole numerosa, fato muito comum na estrutura familiar do início do século XX. Foram doze filhos: Antônio Santiago (1897-1950), Maria Santiago (1899-1953), Leôncio Santiago (1901-1945), Silvio Santiago (1912-1986), Santinha Santiago (1908-2001), Arlindo Santiago (1910), Anísio Santiago (1912-2002), José Elzito Santiago (1915-1945), Anita Santiago (1913), Osvaldina Santiago (1917) e Osvaldir Santiago (1919-2007). Dos doze filhos, somente o primogênito, Antônio Santiago, nasceu em Medina; os demais em Salinas.
José Santiago veio a falecer em 1944, aos sessenta e sete anos e a sua esposa, Virginia Celestina, em 1965, aos oitenta e três anos. Foram precursores da família Santiago em Salinas, cujo tronco da árvore genealógica tem origem na região de Diamantina.
Da prole numerosa de José Santiago o destino reservou ao sétimo filho trajetória de vida que o tornaria parte da história de Salinas: Anísio Santiago. Nasceu no dia 2 de fevereiro de 1912, na fazenda Bonfim, zona rural de Salinas. Ali cresceu e viveu sua infância e adolescência ao lado dos pais e irmãos.
Aos doze anos de idade, escondido do pai, experimentou beber cachaça pela primeira vez. Não gostou. Desde então jamais bebeu cachaça em toda a sua vida. Entretanto, quis o destino que a cachaça tivesse importância fundamental em sua vida.
O jovem Anísio Santiago aprendeu vários ofícios. Foi carpinteiro, tropeiro, comerciante, motorista e fazendeiro. Como tropeiro transportou mercadorias em mulas entre Salinas e Montes Claros na década de 1930.
De tropeiro tornou-se motorista de um Ford F-8, que adquiriu no final da década de 1930. Foi um dos primeiros motoristas da região de Salinas e foi testemunha ocular da modernidade que aos poucos chegava através das estradas empoeiradas e esburacadas.
Em 1937, aos 25 anos, Anísio Santiago casou-se com Adélia Mendes (1916-2007), então com 21 anos de idade. Deixou o povoado de Lagoinha e fixou residência na cidade de Salinas, onde continuou a exercer as atividades de comerciante e motorista.
Alguns anos depois, em 1942, comprou a fazenda Havana de um parente no sopé da Serra dos Bois distante dezoito quilômetros da sede do município. Para lá mudou com a esposa. Iniciava nova fase na vida do então jovem Anísio Santiago.
Estabelecido definitivamente na fazenda Havana, um ano depois, começou produzir cachaça no pequeno alambique que existia na fazenda do antigo proprietário. Em pouco tempo a produção de cachaça se tornou a principal atividade econômica da propriedade rural. A cachaça produzida era vendida a granel. Em 1946 constituiu empresa e passou a identificar o seu produto através da marca Havana. A marca foi pioneira na região de Salinas. O produtor Anísio Santiago foi o primeiro produtor de cachaça a identificar a bebida por meio de uma marca, dando origem e personalidade ao produto. Até então os produtores do município e região produziam e vendiam cachaça a granel a comerciantes e tropeiros da região.
Em 1947, adquiriu o caminhão Chevrolet Leadmaster, 1947, no Rio de Janeiro, importado dos Estados Unidos. Ele próprio foi à capital federal buscar o caminhão. Com ele passou a comercializar a sua cachaça em Salinas, região norte-mineira e sul da Bahia. Como produzia cachaça de qualidade logo foi adquirindo fama junto ao consumidor.
Anísio Santiago teve dois fatores decisivos na divulgação do seu produto: a marca Havana (pioneira na região de Salinas) e o caminhão que transportava a bebida diretamente ao consumidor. Com isso saiu na frente dos produtores que comercializam o seu produto a granel. Na década de 1960, vários produtores de Salinas começaram a identificar o seu produto por meio de marcas, de olho no sucesso da cachaça de Anísio Santiago. Viam nele uma referência no processo de produção de cachaça de qualidade, uma vez que a marca Havana tinha grande aceitação na região e a sua fama estava ultrapassando fronteiras. Em função disso logo surgiram várias marcas como a Piragibana, do produtor Ney Corrêa; a Indaiazinha, do produtor Waldete Romualdo; a Seleta, do produtor Miguelzinho de Almeida; a Teixeirinha, do produtor Felismino Teixeira; a Asa Branca, do produtor Juventino Queiroz; a Sabiá, do produtor Juca Marcolino; a Estrela do Norte, do produtor Purdencio Francisco dos Santos; e a Pulusinha, do produtor Narciso Dias Corrêia.
História da cachaça
Havana/Anísio Santiago
contada em livro.
Outro fator determinante para o surgimento de novas marcas em Salinas foi a decadência da cadeia produtiva de cachaça na região de Januária, na década de 1960, século XX, em função da ação gananciosa dos produtores, que não souberam manter a qualidade e tradição da cachaça ali produzida. Até então as marcas de Januária gozavam de alto conceito junto ao consumidor, na região norte-mineira e em todo o Brasil.
Com isso, Salinas foi aos poucos preenchendo lacuna no mercado de cachaça deixado pelos produtores de Januária. Na década de 1970, Salinas foi se impondo regionalmente como grande produtora de cachaça. O clima, solo e a variedade de cana Java, que se adaptou muito bem ao clima da região, foram fatores decisivos em todo o processo. Outro aspecto interessante no crescimento do setor produtivo de cachaça é a marca Havana, na época já reconhecida como marca tradicional, que se tornou um ícone dos produtores da região.
Na década de 1990, a cachaça de Salinas passou por novo e vigoroso processo de expansão da produção, culminando no aumento significativo de marcas em função da implantação do Pró-Cachaça, pelo governo mineiro, em 1992, visando estimular o aprimoramento da cachaça artesanal mineira. E deu certo. O Pró-Cachaça, em pouco tempo, revolucionou toda a estrutura da cadeia produtiva da cachaça artesanal produzida em todo o território mineiro, e em Salinas não foi diferente.
Atualmente, existem mais de 50 marcas de cachaça produzidas no município. A produção já ultrapassa cinco milhões de litros por safra (anual). Tornou-se na importante região produtora de cachaça artesanal de Minas Gerais e do Brasil. Em 2006, foi responsável por 45,87% de toda a arrecadação de ICMS, imposto de circulação de mercadorias e serviços de competência estadual, em todo o território mineiro. O processo de diversificação da economia brasileira ao longo nas últimas décadas vem forjando e incrementando atividades econômicas de produtos típicos da cultura do Brasil no mercado com forte impacto nas economias locais. Salinas encontrou no agronegócio da cachaça uma atividade econômica que vem mudando o perfil de toda a sua economia, contribuindo para o seu desenvolvimento sócio-econômico.
Reconhecendo a cachaça como importante atividade econômica e cultural, o prefeito de Salinas, José Antônio Prates, por meio do Decreto Municipal nº. 3.728/2006, reconheceu a marca Havana, ícone das marcas produzidas no município, como Patrimônio Cultural Imaterial de Salinas, em face de sua história, qualidade e notoriedade no mercado brasileiro e no exterior. Por meio do decreto, fato inédito no Brasil, o poder executivo municipal reconheceu o feito espetacular do produtor Anísio Santiago, empresário rural que conseguiu dar credibilidade e alto conceito de qualidade em todo o território nacional e no exterior da mais importante e genuína bebida brasileira: a cachaça.
Anísio Santiago foi empresário local que conquistou o mundo não por altas cifras em faturamento e sim pela excelência de qualidade de um produto que foi e continua sendo concebido por método de produção ainda não decifrado pelos produtores de Salinas e de outras regiões de Minas Gerais e do Brasil. O segredo é guardado pelos filhos que vem mantendo o processo de produção pelo mesmo método de origem. Anísio Santiago ultrapassou a barreira de empresário rural norte-mineiro que deu certo. Mais que isso, se tornou no símbolo de bebida que faz parte da história brasileira desde o século XVI, na década de 1530, quando o português Martin Afonso de Souza construiu engenhos na Capitania de São Vicente para a produção de açúcar e cachaça.
A Fazenda Havana, onde é produzida a bebida, se tornou em espécie de reduto sagrado do universo da cachaça brasileira ao longo das últimas décadas. O jornalista paulista Sidnei Maschio afirma que “Em vários lugares ao redor do mundo, as visitas exigem mesmo um ritual específico, coerente com a sacralidade que eles encerram. A Fazenda Havana está nessa lista. A propriedade poderia ser comparada a um templo, pelo papel na recuperação e na divulgação das melhores qualidades da bebida genuinamente brasileira. O universo da cachaça tem duas histórias distintas, uma antes e outra depois da Havana”.