domingo, 9 de maio de 2010

Música que resiste ao tempo

Autor: Fernando Gripp

A vocação histórica de Diamantina para a boa música é inegável. Muito mais que isso, o diamantinense orgulha-se verdadeiramente de suas tradições e costumes musicais. A prova disso é a Vesperata, manifestação musical original que divulga a cidade por todos os cantos. São vários os exemplos que justificam essa fama: os seresteiros pelas ruas enluaradas, os grupos de chorinho da feira do mercado velho, o simpático grupo do “café no beco”, os concertos dominicais da Banda Mirim, o poético sarau da Arte Miúda, os ensaios da Banda Euterpe no Beco do Mota, a cantoria das pastorinhas de Dona Ambrosina, a criatividade do Iukerê, as batidas contagiantes da dupla Bartucada/Batcaverna, os esquecidos vissungos e muito mais. Enfim, em todas as festas, solenidades oficiais, casamentos, comemorações e demais encontros sociais lá está uma banda, um pandeiro, uma clarineta ou um violão para animar a festa.

Para entender um pouco mais sobre essa relação da cidade com a música, uma leitura obrigatória é o livro “La Mezza Notte: o lugar social do músico diamantinense e as origens da Vesperata”. Os autores, Antônio Carlos Fernandes e Wander Conceição, nos apresentam um rico texto com as origens da tradição musical da sociedade do Arraial do Tijuco, destacando a produção do músico Lobo de Mesquita, o importante papel dos “casacas pardas” da Banda da Polícia Militar para o desenvolvimento e a preservação da história musical da cidade; além de resgatar a origem da Vesperata na primeira metade do século passado pelas mãos do maestro Piruruca.

Lobo de Mesquita é um caso especial nessa história e tem sua obra reconhecida internacionalmente. Talentoso organista, regente e compositor brasielria que viveu no Arraial do Tijuco na segunda metade do século XVIII, foi o responsável pelos órgãos da Matriz de Santo Antônio e da Igreja do Carmo. Sendo este último considerado por especialistas como um dos quatro instrumentos do gênero mais importantes do Brasil. Lobo de Mesquita é patrono da cadeira número quatro da Academia Brasileira de Música e dá nome ao conservatório de música da cidade.

Essa riqueza musical chamou a atenção de viajantes europeus que aqui estiveram no século XIX, tais como o francês Auguste De Saint-Hilaire e o explorador inglês Richard Burton. Os concertos musicais e as apresentações teatrais eram eventos comuns na alta sociedade daquela época, símbolo de riqueza e opulência provenientes do diamante.

Quando esteve aqui, no início do século XIX, o botânico, naturalista e viajante francês Saint-Hilaire, relatou o seu contato com os músicos do Arraial do Tijuco: “tanto quanto pude julgar eles não são menos hábeis na arte musical que os outros habitantes da Província, e uma missa cantada que assisti na Igreja de Santo Antônio não me pareceu inferior à que assisti alguns meses antes na Vila do Príncipe”. E acrescenta: “assisti um concerto em que figuravam lindas variantes sobre uma ária...”

O inglês Richard Francis Burton era viajante, explorador e escritor que conhecia profundamente várias partes do mundo, especialmente a cultura oriental e africana. Falava 29 línguas, foi tradutor de obras clássicas como “Os Lusíadas” e “As mil e uma noites”; tornando-se, sem dúvidas, uma das figuras mais fascinantes do século XIX. Em 1867, ao se despedir do Arraial do Tijuco, durante a fantástica viagem de canoa de Sabará ao oceano Atlântico pelo Rio São Francisco, Burton relata sua impressão sobre sociedade diamantinense: “Deixei com pesar a região de Diamantina [ ]. Socialmente falando, é o lugar mais simpático do Brasil, à luz da minha experiência”. Durante sua visita Burton comenta que participou de um alegre baile animado por boas bandas musicais.

Transportando-me para a Diamantina de hoje e conhecendo um pouco dessa tradição musical de boa qualidade, sou apanhado de surpresa quando sou despertado pelo carro de propaganda que desfila pelas ruas anunciando em altíssimo som a mais nova e “imperdível” atração musical que está programada para a cidade. São “fuguetões”, “dejavus”, “bambalados”, “calypsos”, duplas sertanejas e outros nomes de sucesso instantâneo e efêmero. Pela intensidade e insistência do som da propaganda volante, o sucesso de público e crítica é garantido. Pela pequena amostra que ouço pelos potentes alto-falantes, algo soa contraditório com as tradições do rico patrimônio cultural da cidade.

Qual a explicação para esse fenômeno? Certamente muitos levantarão a teoria de que a grande mídia e a indústria musical são os responsáveis pelo processo de massificação e banalização da cultura em nosso país. Um processo que assola não só a música, mas sim todas as manifestações artísticas e culturais da moderna sociedade.

Outro ponto deve ser acrescentado nessa discussão. Diamantina está se tornado uma cidade universitária, formada por aqueles que provavelmente tiveram maior acesso aos elementos da cultura e que futuramente serão formadores de opinião do país. Contraditoriamente, os exemplos dessa cultura musical jovem confirmam esse processo de banalização da música popular. Os altos sons que nos chegam das festas, das repúblicas, dos potentes alto-falantes instalados nos porta-malas dos carros e das rádios jovens da cidade nos levam a refletir sobre essa contradição.

Enfim, não trilharemos o perigoso caminho de discussão sobre gosto musical ou defenderemos a padronização daquilo que as pessoas ouvem. Não podemos exigir que todos ouçam apenas a música erudita, MPB ou qualquer outro tipo. Música boa é aquela que toca, emociona. Mas é necessária uma reflexão sobre a preservação, o resgate e a divulgação do rico patrimônio musical de Diamantina. As novas gerações precisam estar atentas, não podem aceitar passivamente tudo que é vendido por aí, sucesso fácil, descartável, de qualidade duvidosa e que não resiste ao tempo.

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