Autor: Marcos Lobato Martins, blog Minas de História
O que se seguem são impressões de não-especialista, que sequer arroga para si a condição de arguto observador. Mas são observações motivadas por afável curiosidade, de quem tem Diamantina como sua terra eleita e reconhece no Carnaval da cidade montanhesa uma de suas expressões mais famosas. Não sou folião, porém não me furtei a acompanhar as reinações de Momo nas ladeiras, becos e cachoeiras de Diamantina, ainda que na situação de cicerone de parentes e amigos que visitavam a cidade justamente no Carnaval. Essas observações abarcam período considerável, que se estende da primeira metade dos anos 1980 até os dias de hoje. Cerca de trinta anos, intervalo no qual alterações significativas ocorreram, na cidade como no seu Carnaval.
Começo pelo óbvio. A fama do Carnaval de Diamantina só cresceu nesse período, traduzida na afluência de público que acorre para a cidade ano após ano. Todos os jornais e telejornais da capital cobrem o Carnaval de Diamantina com reportagens diárias, o que começou a se verificar a partir dos anos 1990. Por conseguinte, Diamantina virou “point” do Carnaval brasileiro, na medida em que recebe turistas do Rio de Janeiro, São Paulo, centenas de europeus e milhares de mineiros originários de praticamente todos os cantos de Minas Gerais. Cumpriu-se, nesse aspecto, a promessa que já existia nos tempos da passagem do Barão Tschudi pela cidade, na década de 1860. Então, os habitantes tentaram convencer o aristocrata naturalista alemão a aguardar o Carnaval no antigo Tijuco, prometendo-lhe festa tão animada quanto as que ocorriam na Corte.
O Rio de Janeiro ofereceu régua e compasso para os antigos carnavais de Diamantina. O modelo era o mesmo, havendo apenas uma diferença de escala. Na primeira metade do século XX, o corso e os bailes ditavam o ritmo da festa. No sábado, um “grito de carnaval” às duas horas da tarde disparava a folia no centro da cidade. Blocos carnavalescos desfilavam, rumo à Estação ferroviária. No início da noite, o Rei Momo e a Rainha do Carnaval chegavam de trem, vindos da estação de Barão de Guaicuí. Eram recepcionados por uma multidão entusiasmada, marcando o auge da “Noite do Zé Pereira”. No domingo, durante o dia, blocos de rapazes, moças e crianças, com suas respectivas bandas, corriam as ruas. O corso dominava a noite. Carros alegóricos, com ocupantes ricamente fantasiados – marinheiros, índios, colombinas, pierrots – travavam guerras de lança-perfumes, serpentinas, confetes e limões-de-cheiro na Rua Direita e no Largo da Igreja de São Francisco. Todo ano, um carro com moças fantasiadas de índias representava a lenda do Acayaca, imortalizada na obra de Joaquim Felício dos Santos. Terminado o corso, o baile do Club Acayaca começava. A mesma programação repetia-se na terça-feira. As composições de passageiros traziam diamantinenses que moravam fora, além de alguns forasteiros apaixonados pelo Carnaval do antigo Tijuco. O Carnaval ainda era caseiro, familiar, comunitário.
Entre os anos 1950 e 1960, o corso desapareceu e os forasteiros avolumaram-se. A folia, contudo, até os anos 1970, dependeu dos cordões de carnaval (a exemplo dos tradicionais “Rato Seco” e “Sapo Seco”) e dos bailes de fantasia. Havia ainda pequenas escolas de samba, como a “Pena Branca” (da Consolação), expressões comunitárias da alegria espontânea nos bairros – Diamantina não possuiu favelas nas encostas de morros, a despeito de ser uma cidade incrustada numa encosta rochosa. A música, em proporção razoável criada localmente pela multidão de músicos que a cidade ainda hoje orgulhosamente possui, emulava as marchinhas e sambas de raiz que se ouviam nos rádios capelinhas, nas casas de famílias e nos bares nos becos. Seu Tininho, contador, boêmio e compositor, autor da marchinha intitulada “Porão de Oscar”, simbolizava bem os mestres do carnaval diamantinense desse período. Sem o corso, a fina flor da sociedade brincava nos bailes do Club Acayaca, em certames noturnos cheios de gala, animados por orquestras formadas por músicos que serviam o 3o Batalhão da Polícia Militar. Na porta do Acayaca, no início da Rua da Quitanda, populares – e até “mulheres públicas” do Beco do Mota – espiavam a folia dos ricos diamantários, comerciantes e altos funcionários públicos residentes na cidade. Cem metros adiante, numa rua paralela, o povo mais simples pulava Carnaval no Assedi, o salão da Associação dos Servidores de Diamantina. Na madrugada, sorrateiramente, rapazes de um e outro clube convergiam para os movimentados cabarés do Beco do Mota. Afinal, o Carnaval é uma festa carnal! Antes dos bailes à fantasia, porém, havia os desfiles dos blocos carnavalescos e das escolas de samba, ao redor da Praça Corrêa Rabelo, abraçando a catedral da Sé de Santo Antônio. Eu mesmo vi os remanescentes dessas agremiações quando cheguei à cidade: “As Domésticas”, “As Gatinhas” e “Xai-xai”, para ficar em três exemplos. Sob o sol e o calor do verão no Espinhaço central, desfilavam o Rato Seco, pela manhã, e o Sapo Seco, à tarde, da Praça do Mercado até o Largo Dom João. Ainda hoje, é preciso fôlego para seguir esses cordões.
Assim, até os anos 1980, o Carnaval de Diamantina era de rua, e de movimento. Os bailes haviam perdido importância – desapareceram gradativamente. Ficou o movimento nas ruas, as aglomerações nos becos, que se desfaziam rapidamente, exceto no Beco do Mota, já transformado de área de meretrício em concentração de barzinhos. Nele, durante a noite, reuniam-se principalmente as pessoas de fora que vinham brincar na cidade. Aí começaram a ganhar fama conjuntos como Bartucada e Bat Caverna.
Na década seguinte, a filiação de Diamantina ao modelo carioca de Carnaval foi posta em xeque. A folia diamantinense aproximou-se bastante do Carnaval de Salvador, caindo sob a hegemonia da música baiana. De modo mais específico, o Carnaval de Diamantina ficou mais parecido com o Carnaval de cidades litorâneas como Porto Seguro, nas quais há um “centro fixo” para a folia. Nessas, a avenida beira-mar; em Diamantina, a Praça do Mercado. Além do axé, a cidade viu surgirem áreas vips e abadás. Os blocos e as escolas de samba, que animavam as noites, ficaram absolutamente secundarizados. Muitos desapareceram, enquanto o Beco do Mota, a Rua da Quitanda e o Mercado concentraram os foliões. Apenas o Sapo Seco continuou subindo e descendo morro, seguido por multidão crescentemente formada por turistas. Em cada esquina, diante das repúblicas de estudantes e das casas alugadas pelos forasteiros, a miscelânia de ritmos aumentou. Hoje, ouvem-se axé, funk, samba, MPB, pop rock, versões eletrônicas de marchinhas. Os policiais não tocam mais nas bandas, agora se limitam a reprimir excessos e prender trombadinhas. Nos anos 1990 e 2000, os habitantes de Diamantina aproveitaram o Carnaval para montar biroscas temporárias, vender cervejas, sanduíches, tira-gostos e “ices’ (mistura de vodca com soda) para os “baladeiros” – mudança sintomática no nome do outrora folião. E alugam suas casas para grupos de turistas. Negócios que rendem bons trocados, mas que transformam os moradores da cidade cada vez mais em meros espectadores do Carnaval de Diamantina.
Arrisco um palpite: o Carnaval de Diamantina está suspenso entre dois modelos. O carioca persiste na continuidade do Rato Seco e do Sapo Seco. O modelo baiano entrou em cena com as bandas Bartucada e Bat Caverna, que, à maneira de trios elétricos sem rodas, animam foliões até altas horas da madrugada em pontos fixos da cidade. Se Diamantina tivesse orla marítima e grandes avenidas, penso que já teria se rendido completamente aos enormes trios elétricos soteropolitanos. Oscilando entre os dois modelos, os moradores da cidade que apreciam Carnaval vivem uma espécie de mal-estar, uma “crise de identidade momesca”. Daí a aversão crescente às modas baianas e o saudosismo em relação aos carnavais “autênticos” dos anos 1940-1950. O desenlace para essa crise de identidade talvez ocorra em favor do modelo carioca renovado, na direção do carnaval de rua que está crescendo na antiga capital do país, com base nos cordões que se multiplicam em toda a cidade. Nesse aspecto, tenho a impressão de que Diamantina reatará seus laços, estreitos e seculares, com a antiga Corte. O flerte com o Norte – é meu palpite – terá sido apenas um escorregão, travessura de urbe que andava cansada de tantas tradições lusófonas e imperiais.
Quais as razões do namoro com o Norte, com a música e o carnaval da Bahia? Além de fenômeno nacional no início dos anos 1990, ressalto que nessa aproximação há pelo menos um aspecto local relevante. A crise do garimpo nos anos 1980-1990 colocou Diamantina prostrada, sem rumo. O povo e a cidade ficaram desesperançados, dispostos a trocar suas tradições por algo que parecesse novo e tivesse ampla adesão. A baixa autoestima dos diamantinenses abriu a porta para os modismos baianos. A cidade queria romper definitivamente com seu passado, que parecia ter se esgotado junto com as lavras de diamante. Foi justamente quando a cidade obteve o título de “patrimônio cultural da humanidade” (1999) que teve início movimento gradativo de revalorização das manifestações culturais locais, cujo avanço tenderá a repensar a inserção do Alto Jequitinhonha na cultura mineira e brasileira.
Inadmissível, porém, é que continue a prática da Municipalidade de entregar para empresas de eventos a realização e a gestão do Carnaval na cidade, algo que ganhou corpo em fins dos anos 1990. Com isso, os prejuízos foram socializados e os lucros privatizados, sendo destinados a mãos forâneas sem qualquer vinculação com segmentos da sociedade local.