segunda-feira, 8 de julho de 2013

No Vale difere

Fonte: Júlio Assis, publicado no jornal O Tempo

Dicionários informam que mangá é nome dado a histórias em quadrinhos de origem japonesa. No Vale do Jequitinhonha, é outra coisa. Nessa região mineira, mangá quer dizer zombar. Um exemplo de prosa: “Pra mim contá o pessoal que eu apanhei 99 vez é demais. Eles pode me mangá”.

O jeito de falar sobre o esforço na lida cotidiana também é diferente no Vale, observe: “O Dico contava que um impregado dele na roça repetia sem pará: ‘A gente luita e labuta e ninguém oxileia’”. Depois da luita, de luta, oxileia vem de oxiliá, derivado de auxiliar.

São muitas, acho que mais de mil, as expressões reunidas no livro “Dicionário do Dialeto Rural no Vale do Jequitinhonha – Minas Gerais”. A essa rica e curiosa leitura me dediquei esses dias, ao buscar o volume na pilha das publicações que me atraem e que aguardam a vez diante de frequentes prioridades profissionais.

Neste caso, nem foi tanto tempo assim de espera, visto que há cerca de dois meses esse livro foi lançado pela editora UFMG, está fresquinho nas livrarias, com o nome no alto de Carolina Antunes. Professora aposentada da Faculdade de Letras da UFMG, ela, filha da região do Jequitinhonha, se dedicou desde 1980 a esse trabalho, contando com colaboradores em várias etapas, como informa o volume.

Professora Carolina documenta, por exemplo, que se não tiver fim a “intiputeca” tudo pode “i pra dissimbrea”. A primeira palavra quer dizer travessura. Já a segunda expressão é uma variante de ir para a desembreagem ou perder o controle da situação.

Rufino não é nome ou sobrenome de gente, mas de alguém que se apavora fácil, como demonstra o livro: “Não sei o que tá aconteceno. Esse minino tá muito rufino. Qualqué barulhin dá susto nele”.

O estudo que resultou na publicação tem o devido rigor científico. Textos de apresentação no livro registram a importante contribuição da obra para a lexicografia portuguesa. O lançamento é, dessa forma, valioso para pesquisadores e para o universo acadêmico em questão, mas é também fonte prazerosa para leigos em lexicografia, como meu caso. É uma leitura que traz descobertas, curiosos pontos de comparações e identificações com nossa linguagem urbana cotidiana, oferece a riqueza de um dos regionalismos na cultura do nosso país.

A maneira objetiva como é apresentado o dicionário ajuda a essa aproximação do leitor comum à obra. Logo no começo, há um esquema intitulado “Chave do Dicionário”, que explica as regras de elaboração dos verbetes, todos trazendo exemplos das expressões orais no dia a dia. Em seguida, basta folhear as páginas para, sem complicações, passear pelo dialeto rural do Jequitinhonha.

Ali, a habilidade para realizar tarefas é “cartigolença” (“cê ta duvidano da minha cartilogência pra fazê a comida?”). “Chanhá” é tratar o outro com carinho (“Aqueles dois andam chanhando muito!).

Carolina Antunes salienta que muitas das expressões, “mesmo não sendo encontradas exclusivamente no Jequitinhonha, caracterizam a variante rural dessa região em um quase confronto com a variante urbana. Por conseguinte, esta obra não se configura como objeto possuído dessa ou por essa região e, sim, como uma produção textual e discursiva decorrente de uma coleta de dados orais lá efetuada e de dados escritos sobre ela”.

A professora sintetiza ainda que a coleta dessas expressões “pôs em foco o desempenho da principal função da linguagem – a de ser instrumento de comunicação e interação social – a que estão diretamente atreladas noções de território, cultura e memória”.

Cuidado, por exemplo, se ouvir a palavra “suvertê”, pois alguém pode estar querendo fugir (“Isperto o moço. Passô a mão ni tudo e suverteu, né?”). E, diferentemente de mangá, “mancá” é descumprir compromissos (“Aí o rei mandô Dum-Dum pra lá, porque se ele mancasse, ele ia sê inforcado, né?”).

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