Nos últimos dias, viver em Diamantina trouxe-me muitas lembranças de minha saudosa mãe. Não que ela tenha vivido aqui. Na verdade ela não tinha nenhuma ligação e nunca pisou nessa terra. Todavia, ver Diamantina se preparando e fazendo o seu carnaval levou-me a muitas analogias sobre os sentimentos e comportamentos de minha adorável mãe.
Essa comparação surgiu-me na semana passada ao ver Diamantina se esforçando para parecer mais bonita e agradável para os visitantes. Uma cidade que queria estar melhor para receber o turista durante o carnaval. Essas manifestações reviraram minha memória e trouxeram à tona a época em que minha mãe começava a se preparar para receber suas visitas para as festas de natal e ano novo. Lembro-me que por volta do mês de outubro ela já começava a se organizar, planejava uma nova pintura para a casa, uma modificação no jardim, uma caprichada na cera parquetina e no escovão para dar maior brilho nos tacos amarelados da sala, a compra de um novo colchão, a pesquisa de novas e tradicionais receitas e muitas outras providências para receber os filhos, parentes e amigos que estavam longe. Apesar do trabalho, podíamos ver todos os anos um brilho especial em seus olhos durante o planejamento e execução dos seus árduos planos.
Essa analogia com cidade veio-me quando comecei a perceber uma Diamantina inquieta, em movimento, se preparando para uma festa importante. Diferentemente de minha atenta e organizada mãe, vi uma cidade atabalhoada e, em muitos momentos, desorganizada. Homens e mulheres apressados, pintando de um branco encardido os meio-fios de suas praças abandonadas; foram feitos remendos de um asfalto precário nos buracos das ruas que já fazem parte do nosso cotidiano e também notei que terrenos que ficaram sujos e cheios de lixo durante todo o ano foram alvos de uma limpeza superficial. Vi moradores batendo prego no estrado da cama, lavando paredes e consertando aquela velha geladeira que não fechava corretamente a porta. Enfim, o que era para ser feito durante todo o ano precisava ser consertado ou maquiado em poucos dias e horas. Era como se minha mãe não tivesse se preparado com antecedência e a casa não estava pronta para receber suas vistas. Quando pequeno, sempre me perguntava por que mamãe fazia isso. Por que se preparar tanto para melhorar sua casa somente naquele período? Será que durante os outros dias do ano a nossa casa não deveria ser cuidada com todo esse esmero?
Da minha janela eu vi o carnaval passar em Diamantina e comparações maternas persistiam. Imaginei a situação em que minha mãe tivesse errado no dimensionamento do número de convidados. Parentes e agregados de última hora apareceram de surpresa e a nossa casa recebeu mais visitantes do que ela poderia suportar confortavelmente. Para nossa maior surpresa, recebemos novos convidados com hábitos e costumes que nos causaram desconforto e estranheza. O que mais me chamou a atenção foram os seus carros com potentes alto-falantes nos porta-malas para tocar ininterruptamente e bem alto uma música de gosto duvidoso, cujo refrão não sai de minha cabeça - reboleixionxon é reboleixionxon (que rima, pura poseia!) . Faltou água em nossa casa. Além disso, os novos convidados colocavam os pés sujos nas paredes, bebiam cerveja demasiadamente, faziam xixi no quintal, jogavam lixo no chão, usavam um vocabulário que não estávamos acostumados, abordavam indelicadamente as filhas dos nossos vizinhos e até conseguiram quebrar aquele enfeite da mesa da sala que era considerado o patrimônio histórico e cultural da família.
Mesmo com todos esses inconvenientes, via uma mãe se dedicando plenamente para atender e satisfazer seus convidados. Aquele brilho no olhar já não mais existia, foi substituído por um sorriso sem graça e amarelado, uma expressão de vergonha, decepção e cansaço. Por outro lado, a visita inesperada trouxe muita euforia para algumas pessoas de nosso convívio. O padeiro, o dono do armazém, o quitandeiro e até o dono do boteco da rua já disseram que nossos novos convidados são adoráveis e que serão sempre bem vindos. Apareceu até uma prestativa pessoa que se disponibilizou a alugar sua própria casa no próximo ano para nossos convidados. Desconfio que toda essa simpatia e receptividade tenham um motivo puramente financeiro, já que minha mamãe teve que aumentar consideravelmente os seus gastos para manter a fama de boa anfitriã.
Enfim, vejo amanhecer uma quarta-feira cinzenta em Diamantina. Uma cidade feia, deprimente, pisoteada, lixo para todos os lados, um cheiro muito ruim no ar. É como se eu olhasse para nossa casa, o maior patrimônio de nossa família, suja e mal tratada. Dentro dela veria minha mãe deitada na cama, cansada, sentindo dores nas costas e se lamentando que não conseguiu receber bem seus convidados. Mas ela é uma mulher forte, experiente e cheia de histórias. Passados alguns dias, certamente começará a fazer novos planos para receber bem seus convidados no próximo ano. Mas fico me perguntando: até quando a sua saúde suportará esse esforço? Será que ela ainda sente prazer em organizar essa festa? Será possível organizar uma festa mais familiar e menos comercial? Tenho certeza que é possível preparar uma celebração que valorize as tradições e que também incorpore ordenadamente os novos costumes dos mais jovens. Sim, é possível organizar uma festa para todos nós da grande família. Queremos agora uma festa em que a alegria, o prazer do convívio, a felicidade do reencontro, o carinho, a gentileza e o respeito sejam o nosso maior patrimônio.
Boa tarde caro Fernando, concordo plenamente com você e imaginei o cenário que descreveu, mas agora com uma mãe que põe limites inclusive na visita, que gosta de tudo arrumado e tudo limpo. Creio que nós dimantinenses de berço ou de coração temos mesmo que refletir sobre o carnaval qual a mensagem que gostariamos de deixar para as nossas "visitas"?? De um carnaval de desleixo ou de um carnaval de puro encanto e cultura?? Creio que não são poucos os indignados.. então por que não criar ou fazer rebrotar um carnaval mais civilizado, para que as visitas queiram voltar!!!
ResponderExcluirGostei muito do que escreveu, Fernando. Gosto do seu olhar atento e carinhoso por Diamantina.
ResponderExcluirAs comparações perfeitas. Briguei por pés na minha parede branquinha... expliquei como é caro pintar de novo. Me constrangi diante de convidados que não imaginavam escutar o que estavam escutando. Estava mesmo curiosa pela sua opinião. Ainda espero outras, espero pelo "balanço geral". A cidade se recompõe sim. Acho que tenho é uma outra grande preocupação: o que pensa essa moçada? O que querem? Para onde vão assim? Esse é pra mim o pior dos saldos da festa.
Fernando,
ResponderExcluirA resposta aos olho$$ é sempre a mesma: "o carnaval traz divisas para quem aluga sua casa". "É a maneira das pessoas $alvarem o ano". Será? Qual o custo/benefício de tudo isso? Sâmia, essa moçada é a descartável. Que São Pedro tenha pena e abra as suas torneiras, torrencialmente, por uma semana. Ainda assim, as cicatrizes permanecerão. Vitório.
Legal, Fernando.
ResponderExcluirE pegando o plágio na sua história, sinto como se minha mãe dissesse:
- "você tem que sair de casa pra dar lugar e liberdade aos hóspedes. Além de não cabê-los aqui com você, eles tem outros costumes e princípios, quase nada de respeito e educação. Vá embora e volte depois que a festa acabar. Ela não é feita pra vc, meu filho."
E é o que sinto e ando fazendo, infelizmente.
Caros amigos,
ResponderExcluirObrigado pelos comentários.
Realmente é muito triste ver uma cidade como Diamantina, tão bela, cheia de cultura, história, atrativos naturais, boa música, enfim, uma cidade ímpar, sendo tão mal tratada e vendida por tão pouco dinheiro.
Parabéns pelo texto, Fernando! Há tempos o assunto me ïncomoda, mas a gente vai sempre deixando pra lá - afinal, sempre pensei, os moradores da cidade é que devem se preocupar com isso e, se for o caso, tomarem posição. Você levantou a questão: que bom. Por coincidência, li hoje nota do Mário Fontana, no Estaminas, que dá notícia do mesmo problema em Salvador- BA. Será que são as "compensações" pelo título de Patrimônio Histórico da Humanidade? Veja a nota:
ResponderExcluir"Mistério
Pesquisa foi feita em Salvador para saber como os moradores da capital baiana encaram o alegre carnaval da cidade, considerado um dos mais movimentados e genuínos do país. O resultado acabou trazendo uma grande surpresa. Nada menos de 77% dos consultados disseram que não gostam de carnaval e procuram sair da cidade para fugir da folia. Quem não tem condição de se mandar detesta a zoeira, a confusão, a sujeira, os assaltos e ruas engarrafadas. Portanto, fica a pergunta: de onde vêm os milhares de pessoas que lotam as ruas de Salvador? Será que a maioria é gente de fora? Mistério." Grande abraço.
Fernando,
ResponderExcluirachei o seu texto lindíssimo. Tomei a liberdade de reproduzí-lo no meu Blog.
Nós,de outras cidades do Vale, ficamos encabulados e perplexos com o Carnaval de Diamantina. A cidade é tida como um dos lugares do interior do país mais disputados no Carnaval. No entanto, o povo do lugar tem que sair.
Estranhíssimo!!!
Acho que deveria haver alterações no formato da festa. Ouro Preto já viveu experiências com estabelecimento de limites, sem perda do brilho da festa, dos valores culturais, da satisfação dos visitantes.
Grão Mogol não suportou receber 20 mil turistas-foliões, tendo a polícia militar que agir, bloqueando as estradas de acesso à cidade.
São problemas que nossas cidades vivem e poucas enfrentam, principalmentes as chamadas históricas.
Espero que os gestores municipais e a população encontrem alternativas. Se aceitarem palpites de admiradores da cidade, creio que muitos têm muito a contribuir.
Promova algo como "Encontro de Admiradores de Diamantina", não só para elevá-la ainda mais, mas também para apresentar sugestões.
É preciso estar com os ouvidos e coração abertos.
Álbano Silveira Machado - Banu
Berilo, Médio Jequitinhonha
Fernando,
ResponderExcluirParabéns por sua crônica brilhante. Sou uma diamantinense ausente, que se sente profundamente incomodada ao ver minha cidade ser tão depredada por tão pouco, com a permissão das autoridade e de seus habitantes. É este o Carnaval da Cultura????
Maria Cássia - Belo Horizonte
Caro Fernando! Boa noite,vc foi muito feliz em seu texto, não pude deixar de me colocar dentro deste contexto, pois logo não poderemos mais participar desta festa em nossa cidade,ficamos apenas com a sujeira e o mau cheiro em nossas ruas,acho que estamos sendo ingratos com o legado histórico que recebemos.abraços, O Sabiá.
ResponderExcluirAcredito que o interesse financeiro dos moradores que alugam suas casas seja o principal fator para contribuir com a invasão de gangues/pseudofoliões que além de agredir a cultura de um autêntico carnaval do interior de Minas, deixam um rasto de sujeira física e moral em nossa cidade... Nós precisamos de turistas e foliões sim, mas que respeitem a nossa cidade e tragam benefícios e não malefícios.
ResponderExcluirCaro Fernando, sou paulistano mas conheço Diamantina há tempo. Tenho parte da alma aí em Minas e amigos dessas terras lindas.
ResponderExcluirA inquietação com as festas de carnaval, sensivelmente descritas em sua crônica, não ecoam apenas em Salvador. São manifestações do nosso tempo, não do tempo das nossas mães. "Ter que ser feliz" a qualquer custo em três dias, seja lá o que se entende por felicidade, gerando desarranjos esquisitos por toda parte. Como esta idéia de que todo mundo tem que ouvir a "música" que eu gosto por isso abro a tampa do meu carro e inundo os ouvidos de todos com aquilo que considero bom e divertido. Em Aracaju e Piranhas (SE - na beira do São Francisco) o poder judiciário proibiu este tipo de "manifestação" na orla do rio e das praias. A folia de carnaval tem lugar determinado longe das áreas residenciais.
São iniciativas... Mas as perguntas que ficam: o que é "ser feliz"? O que é divertir-se? O que é o outro?
Um ano em que resolvi passar por estas bandas num carnaval, tive que fugir para o meio do mato em Milho Verde.
Fico contente em saber que Diamantina começa a repensar seu carnaval.
Saudações.
Luciano Nakagawa