segunda-feira, 12 de abril de 2010

"Terra Deu, Terra Come" faz viagem etnográfica ao Brasil profundo

Fonte: Pipoca Moderna

“Terra Deu, Terra Come”, de Rodrigo Siqueira, diretor de “Aqui Favela, o Rap Representa” (2003), anda na contramão das migrações históricas e faz a rota da cidade grande para os sertões, atrás do sal da terra. Mergulho etnográfico no Brasil profundo que, num primeiro momento, poderia inscrever-se na vasta tradição da literatura e cinema brasileiros no século 20. Mas este filme transcende o lugar-comum e demonstra mais uma vez o fôlego do gênero, graças a uma mistura de sutileza narrativa, paciência documental e principalmente de um personagem emblemático, chamado Pedro de Alexina — garimpeiro negro com mais de 80 anos da região de Diamantina, no norte pobre de Minas Gerais.

Por meio de Pedro de Alexina, prosador e performático, documentam-se as cantigas de herança africana, as operações do garimpo fluvial, a religiosidade sincrética, as anedotas sobre contratos com o capeta, os instrumentos musicais, os “pitos” de cigarro de palha e cachimbo e os “golos” de cachaça.

A descrição aprofunda-se nos elementos etnográficos, tais como o poder transfigurador da máscara, abundante nas culturas africanas, bem como o ritual fúnebre vicário, que remonta à Roma Antiga. Nele, procede-se a um enterro em efígie, isto é, sepulta-se um boneco do morto, a fim de espantar os maus-espíritos e restabelecer o equilíbrio metafísico. Toda essa tradição, lamenta Pedro, está em vias de extinção, porque “as crianças não querem mais cantar”. O que faz todo sentido, na medida em que é nas cantigas que a tradição oral se transmitia de geração em geração.

Embora pautado pelo mítico, indissociável com a vida da comunidade, o filme não perde de vista a história social mais conhecida da escravidão negra nas minas, do latifúndio patriarcal, da alienação do trabalho dos garimpeiros e da continuidade da segregação racial. Em Quartel do Indaiá há somente duas (grandes) famílias, uma de negros e uma de brancos.

Rodeado de sua numerosa família (ele teve 14 filhos), todos descendentes de escravos mineradores, Pedro constitui não só objeto, mas o sujeito do filme, a ponto de ditar a narrativa e construir o painel de personagens, lado a lado com o diretor. É através de Pedro que o cineasta-ouvinte ambiciona tocar, ainda que por raros instantes, aquela realidade exuberante, ao mesmo tempo sofrida e alegre, dura e delicada, mundana e mítica. Nesse intento, é bem-sucedido em não condicionar o material fílmico ao jugo racionalista do “antropólogo branco”, e não submeter a história e as personagens a um enredo pré-concebido e previsível.

Nas entrevistas, percebe-se o esforço de imersão no caldo humano, inclusive na tentativa de “falar a mesma língua”, de comunicar-se na mesma coloquialidade dos matutos. E assim, o longa consegue ser histórico sem render-se ao discurso civilizatório, e político sem impor uma ideologia.

Inteligente o modo como o documentário enfrenta o dilema realidade/ficção, ainda mais pertinente no gênero etnográfico. Em “Terra Deu, Terra Come”, abole-se explicitamente a fronteira. Trata-se, com efeito, de uma alegoria. Pedro de Alexina é um personagem alegórico. Ao contrário da fábula (sentido único) e da metáfora (sentido duplo sem ambigüidade), a alegoria trabalha sentidos múltiplos e ambíguos, cabendo ao espectador trilhar um ou outro caminho interpretativo.

Como exemplo máximo disso, no início, ao filmar o falecido João do Carmo, de 120 anos, o cineasta joga com o fora-de-campo, numa recusa perceptível em não enquadrar o cadáver. No desfecho, veremos como não era (reprovável) pudor da morte, como se poderia supor, mas de uma estratégia deliberada que é a poética mesma do filme, abrindo a obra para o espectador-intérprete.

“Terra Deu, Terra Come” resulta, portanto, um documentário de matiz alegórico cuja força está em não servir a verdades monopolizadoras ou à submissão da matéria fílmica ao discurso do documentarista, mas sim à potência criativa dos espectadores, que podem descobrir e construir muitos sentidos a partir da história. Se o cinema é a arte do demo, como sugere um dos sertanejos, neste filme somos os maiores beneficiados pelo pacto.

3 comentários:

  1. Vc tem esse documentário? Poderia partilhá-lo comigo?

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Infelizmente não tenho esse documentário, mas gostaria muito de assisti-lo. No link da fonte (pipoca moderna) tem o teaser.

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