Fonte: Leilane Menezes - Correio Braziliense, publicado no Jornal Estado e Minas
Boquiaberto, o ex-presidente da República Juscelino Kubitschek observava a manchete de jornal. Lia: “Cassado JK”, em letras maiúsculas. Na foto que registrou esse momento, com sobrancelhas baixas e olhos tristes, um dos homens mais poderosos do país parecia devastado por dentro. Militares no poder tomaram-lhe o mandato de senador e suspenderam seus direitos políticos durante os 10 anos seguintes à publicação, em 1964. Era como se lhe tirassem o direito de respirar.
Na tentativa de se proteger dos excessos da ditadura, restou somente uma opção: sair do país. Paris foi o destino escolhido. Essa época da vida de Juscelino, de detalhes pouco conhecidos até por familiares do ex-presidente, é tema do documentário JK no exílio. O filme de 51 minutos, uma produção franco-brasileira, serálançado no próximo dia 18, às 19h, no Museu Nacional, em Brasília. A exibição será para convidados.
Ontem, o filme teve pré-lançamento em Diamantina (MG), onde nasceu JK, em homenagem ao aniversário do mineiro, que completaria 109 anos amanhã. A fita traz depoimentos inéditos de pessoas próximas ao homem que construiu Brasília. Entre elas, o jornalista Carlos Heitor Cony, coronel Affonso Heliodoro (um dos melhores amigos de JK, que vive ainda hoje em Brasília), a filhaMaria Estela Kubitschek e, principalmente, histórias contadas por Maria Alice Gomes Berengas, atualmente com 88 anos, a fiel escudeira de JK durante os tempos em Paris.
O documentário começou a ser rodado em 2008. Tem cenas na capital francesa, no Rio de Janeiro e em Brasília. Ficou pronto no fim de 2010. As imagens francesas mostram o prédio onde JK e dona Sarah viveram. O mesmo onde morava Edith Piaf. Revelam também a falta de prática do ex-presidente como motorista. Acostumada a viver em palácios, a família passou a habitar um apartamento de dois quartos. Apesar dos boatos espalhados à época da ditadura — de que JK era a sétima maior fortuna do mundo — os Kubitschek viviam com simplicidade. Passaram por problemas financeiros. Receberam ajuda financeira de amigos, que dão depoimentos no filme.
Os momentos mais emocionantes do documentário são as leituras de cartas enviadas por JK a familiares e amigos, enquanto estava em Paris. As palavras revelam um homem sensível, exímio escritor, totalmente sem chão. O documentário ganha um tom ainda mais íntimo quando torna públicos pensamentos desesperados de Juscelino, que chegou a considerar a ideia de suicídio. “Ou Deus me leva ou eu vou ao encontro dele.” E também: “Daria tudo para voltar hoje. Preciso ir embora. Vivo em estado de angústia. Se as coisas continuarem como estão, vocês receberão o corpo do ex-presidente. Perdoe-me o desabafo. Há dias que o copo transborda.”
Para os familiares, a exibição do documentário é a chance de apresentar uma face pouco conhecida de JK. Maria Estela, hoje aos 68 anos, esteve na França para reencontrar-se com Maria Alice, que não via há 40 anos. “Eu não conhecia a história por esse lado. Minha neta disse: ‘Ninguém sabia que o bivô tinha sofrido tanto’. É esse o clima do filme”, afirmou.
Maria Alice era secretária de Juscelino, na França. Mulher de confiança a quem ele destinou a missão de datilografar suas memórias. Os dois se conheceram por meio de um amigo em comum. Um brasileiro e professor universitário, que morava no país. Quando soube que JK havia se mudado para Paris, o acadêmico pediu a Maria Alice, que trabalhava no Centro Internacional de Conferências, que ela fizesse companhia ao político.
Encontro
A relação entre Maria Alice e o casal Kubitschek evoluiu para amizade. Foi interrompida depois da primeira viagem de JK ao Brasil depois do exílio. Em 4 de outubro de 1965, o ex-presidente desembarcou de um avião da Air France, no Rio de Janeiro. Logo recebeu duas intimações de militares para depor. Os dias seguintes foram de agonia e interrogatórios. “Meu pai ficou 14 horas sentado em um banco de madeira sendo interrogado, sem nenhum motivo. Ao final, nós pedíamos a ele que voltasse para o exílio, por favor”, lembrou Maria Estela.
Na volta para o exterior, JK mudou-se para os Estados Unidos. Em Paris, ele era vigiado pelo governo do general Charles de Gaulle. Instalaram grampos e microfones ocultos, além de violar correspondências. Apesar de adorar a cidade, JK ficou frustrado por não encontrar ali seu ideal de liberdade. Por essa razão, escolheu os Estados Unidos, onde sobreviveu com o dinheiro que ganhava dando conferências em universidades.
Maria Alice tinha vindo ao Brasil para acompanhar o patrão. Ela deveria embarcar pouco depois de JK, rumo aos EUA. Acabou impedida de viajar pelos militares, que lhe tomaram os passaportes brasileiro e francês, como forma de atingir o ex-presidente. Maria Alice foi perseguida pela ditadura. Teve de sair do Brasil “como em um romance”, como ela mesma descreveu. Embarcou em um navio italiano. Ao descer em terra firme, na França, foi recebida pela polícia.
Perseguição
Depois da separação da secretária e de JK, semanalmente, militares visitavam a casa de Maria Alice, na tentativa de saber mais a respeito de seu chefe. Queriam que ela falasse sobre quem o visitava e sobre o que conversavam. “Não gosto de lembrar. Eles pediam que eu dissesse coisas que, mesmo se soubesse, não ia falar. Queriam saber da vida pessoal do Presidente. Para mim, a lealdade era o mais importante”, relatou, no documentário. O ex-presidente soube dessas histórias somente anos mais tarde, quando a ditadura perdeu força. Antes disso, não imaginava o porquê do sumiço de sua funcionária. Maria Alice recuperou os passaportes no ano passado, depois das gravações do documentário.
A princípio, o filme contaria a história de Maria Alice. O professor brasileiro Carlos Alberto Antunes Maciel — dono da ideia original do documentário — morava na França. Lá, conheceu a secretária. Foram necessários mais de 15 anos de amizade até que Maria Alice permitisse contar sua história. Durante as entrevistas, entretanto, Carlos descobriu um rico universo de fatos sobre Juscelino Kubitschek.
Carlos decidiu contar os detalhes do exílio, por meio da voz e da memória da dedicada secretária. Para dar forma ao projeto, Carlos convidou o diretor Charles Cesconetto, seu amigo de Florianópolis, e o cineasta francês Bertrand Tesson. “Vi que era um projeto muito especial. Sabíamos muito pouco sobre o exílio, um momento tão difícil. Pouco veio a público, porque não era do interesse dos militares. O filme vem fazer justiça a JK”, explicou Charles. O exílio acabou em 9 de abril de 1967. JK voltou ao Brasil. Morreu em um acidente de carro, em 1976. Somente dois volumes de suas memórias escritas foram publicados. Maria Alice, hoje, vive em um asilo, em Portugal. Restaram as lembranças.
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